Dairan Lima
Tocantins - N
Dairan Lima é poeta, nascida em Dueré (TO). Vive em Goiânia, onde é professora de língua portuguesa. Publicou o primeiro livro, Vermelho, pela Nega Lilu Editora em 2016
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Poemas
XX
Certa vez,
uma deusa dormiu comigo.
Ao tirar sua blusa
e lamber seus seios de pedra,
estraguei meus dentes.
A minha amante
era má, traiçoeira.
Um dia disse:
- Eu já vou!
E cortou minha língua.
XXV
Moços todos
que passam,
trepados nos seus motores,
suplico: casai comigo,
que sou bela virgem santa.
Moças todas
que desfilam
com seus vestidos de gaze,
imploro: dormi
na minha cama assassina.
Moços e moças,
é urgente o meu pedido
- como se fosse ordem divina -
não terrestre:
- acariciai
o meu sexo desgraçado!
XVII
Toda gente se assusta
quando vê o retrato dele.
Era amor
o que se amava.
Fez-se pó, poeira.
Nada.
Ele se foi
com a mulher distante,
cuspiu no prato de sopa.
Contei pros outros
que contaram pros passarinhos...
Resolvi mudar de mim.
Enjoei da minha cara,
cortei os meus cabelos
e os meus sonhos à navalha.
Pus um vestido de noite
que duramente teci
e fui ser
o que ele havia feito de mim.
Lia Testa
Tocantins - N
Lia Testa é professora, poeta e colagista. Possui pós-doutorado em etnopoesia (PPGL/UFT – 2020). É Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP – 2015), Mestre em Letras pela (UEL/PR – 2002). Tem publicado dois livros de poesia: guizos da carne: pelos decibéis do corpo (Poesia Menor, 2014) e sanguínea até os dentes (Patuá, 2017). É professora da graduação e pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
latitude: -10,2600597 / longitude: -48,3472344

Poemas
guizos da carne
I
a epiderme tem guizos
de carne
a epiderme tem derme
de orgias
a epiderme não dorme
de dia
a epiderme come o tempo
de noite
a epiderme mora na língua
de quatro
a epiderme se perde
na escrita
a epiderme morde o corpo
da onça
e da moça
devagar
guizos da carne
II
eriçada a epiderme chia
chama oriki orixá
canto de lava na derme
onde os guizos da carne
comem devagar a moça
a onça da moça
pela ponta da boca
pela porta da sola
pela ponta da língua
sopro em estado de fala nômade
nem todos sabem cantar
mas todos sabem cantar
palavra-canto
canto-do-olho
no jato do jogo
eu canto a palavra canto
eu desenho o qorpo santo da orgia
o dito rechia balbulcios na pele
magia que rechina entre os olhos de ouvir
e os ouvidos de ver
o baobá e os calígrafos mulheres
entalham na epiderme
uma ululante flor de carne
(Poemas: “guizos da carne I e II”, In: “guizos da carne: pelos decibéis do corpo”, Lia Testa (Poesia Menor/ SP, 2014)
---
A palavra é o nosso fogo. Nosso axé (Mãe Beata)
devir voz
V
há um devir mantra
um om poema
na voz 108 vezes desfiada
no rosário das nossas línguas vibrantes
o axé dos lábios
no ancestral corpo
vibra sussurrado
nos lóbulos auriculares
entoa a carne da poesia
na escrita que queima
(Poema: “devir voz V”, In: “guizos da carne: pelos decibéis do corpo”, Lia Testa (Poesia Menor/ SP, 2014)
maya
é bicho e gente na sua dança
batuqueira bandalheira roda gira move
é gente e bicho na sua dança
tem cheiro de salmoura
é gente gente na sua vadiagem
mata come cava colhe
miríades de beleza maquiada
é bicho que come bicho
tamborilando no couro na carne
encarnada bate bate bota fora a fala
de ba.lan.gan.dãs
fitas folhas figas uma flor lilás na cabeça
santos nas pulseiras a tilintar
berenguendéns berenguendéns berenguendéns
para olhos negros e negros de cor
para bardos lascivos ver balançar
corpo que rodopia para e rodopia
com véus porque é gente e bicho e dança
(Poema: “maya”, In: “guizos da carne: pelos decibéis do corpo”, Lia Testa (Poesia Menor/ SP, 2014)
---
ser peixe
ser a guelra
do peixe
a escama
da guelra
do peixe
ser barbatana
de peixe
a escama
que escama
a guelra
do osso
do peixe
ser a cartilagem
que dobra o peixe
ser olhos de peixe
ser olhos boca
ópera de peixe
a carnuda
cavidade
do peixe
ser espinho
espinha que
rasga o peixe
nadadeiras
que escapam
longe
ser o longo
dorso do peixe
em linha curva
ser a zona neutra
do aquário
o opérculo
semicircular
de guelras
arco de arpão
isca de anzol
ser anzol e peixe
ser a isca
na guerra
ser a guerra
do peixe na
água
o corpo-orifício
o ar da narina
o branco da
fenda branquial
o olfato
ser o nervo
tongue de peixe
de língua
fusiforme
fiando a água
o céu o mar
fluindo na
sonda aquática
onda de voz
raio rima
peixe-mulher
ser medusas
cristais de guanina
maré
em água doce
ser o sal
ser o peixe
de sal
celacantos
do peixe
ser o muco
da truta arco-íris
o truque da água
a moreia de mole
corpo anguiliforme
ser peixe
ser a guelra
do peixe
(Poema: “ser peixe”, de Lia Testa. In: “sanguínea até os dentes”, SP/Patuá, 2017).
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encarar o difícil do branco
a coluna vertebral do branco
aos poucos entrar em suas camadas
saber da sua vasta temperatura
escutar suas nascentes sentindo
a erupção lançada o quente o vapor
o ar cravando a língua e verbar
o jorro do negro do nanquim
requerente de uma hidrogeologia
de subducção deslizável para iniciar
o alastramento oceânico fraturar-se
desaparecendo em todas as direções
opostas antepostas afastando-se
na vizinha da superfície jaz morta
branca e bramindo de uma outra crosta
nem sempre linear escarpar os vales
ativar os pontos os açores as cristas
o grande rio o mar vermelho
vertendo focos sísmicos choque
nas fissuras lavas vulcânicas
elevar a pressão e ver a subida de
um jato violento atingindo os buracos
negros as caixas pretas os espaços de
um camaleão bombeado pela expansão
do universo de um desce-sobe
um Big Rip ou grande rasgo no tecido
ex-branco uma quinta-força dentro
dos aglomerados das letras
a esparramar as micros-ondinas
solares que empurram o poeta e o leitor
(Poema: “encarar o difícil do branco”, de Lia Testa. In: “sanguínea até os dentes”, SP/Patuá, 2017).
Luiza Helena Oliveira
Tocantins - N
Sou professora de teorias linguísticas, dedicando-me à semiótica em leituras da literatura. Publiquei Solau do mal de amor (EDUFT, 2017), participei de coletâneas de poemas e contos, eventualmente escrevo crônicas e publico em portais. Principiei a narrar memórias familiares, atendendo a uma promessa feita a minha mãe e queria me dedicar ao registro de narrativas de mulheres do Araguaia. Tenho três filhos, duas noras e acho que muitos amigos.

Poemas
amor
construo história amorosa sobre solo arenoso
pelo gosto da água do mar e do sol
ao final é sabido, fato certo e dado,
que em tal contexto precário e instável
incidirá triunfante como destino
o final certo preciso e dado
enquanto, porém, se prolonga, narrativa frágil
palavra vã lançada ao vento,
impossível promessa, conjuntura inviável
que encontre as formas da delicadeza
como orgasmo se dissolva,
no fortuito terreno arenoso
amoroso trato contaminando a terra
poema brega
mentira que se os olhos não veem
o coração não sente
que se os e-mails não dizem
e as colunas sociais não evidenciam
o amor se esquece
se me encanto com o Dustin Hoffman no filme
é ainda você que amo
não é mais ou menos o que declaram
Zezé di Camargo e Luciano?
Em tese
Me disseram que não tenho rigor
Teoria dispersa
frágil semioticista
Atesto-lhe razão
E isso com a alma mais pura
Me ocupo mesmo é de plantas e costura
cuidado de filhos
cães gatos
A vida intelectual escapa às mulheres
das classes excessivamente trabalhadoras
Preconizo ainda teoria
capaz de mudar a prosa do mundo
Rigor?
Só o das chuvas
Dos ventos
Do calor
Da pandemia
Das muriçocas
É sempre tudo demais para o mesmo corpo
Já poesia era para ser resistência
Inventar de vez outra ordem pro mundo
Memória eclesiástica
Já beijei padre
Tinha encantamento pelas telas que exibia
Temática política
Cores vibrantes
Pincelada expressionista
Petista
Todo todo
teologia da Libertação
Andava em crise com a igreja
espionava minhas pernas...
Largou a batina
Sumiu no mundo
Nem era um guerrilheiro
Que sossegasse muito tempo ao meu lado
Oração aos musos bem além
Ah
Um poema, mesmo claudicante
Que encontrasse o corpo do outro,
o distante
Falta-me ritmo e batuque
Passo de dança
tupiniquim
Sei cantar em desafino
Ter-me-ia esquecido?
O silêncio é o não saber
Meu destino
Paula Suzane
Tocantins - N
Tenho 31 anos e sou graduada em jornalismo. Escrevo porque sou perturbada com as palavras constantemente. A arte me salva de mim e do mundo. E eu sempre preciso estar salva disso tudo. Tenho um filho e amo as pessoas de todo meu coração. Já vivi muito. E eu gosto de viver! Gosto porque viver é inventar. E eu sou uma inventora. Acho que é isso: Paula, inventora.

Poemas
Eu ainda não cheguei
O meu remédio não fez efeito hoje
Meu filho disse para uma estranha na rua
minha mãe chora e bate com as mãos na parede
Não chegou meu dia
E eu não acredito em nada, mas busco tudo, e eles dizem
você tem que pensar coisas boas, gostar de você
Não tem nenhum problema a ser resolvido
O problema sou eu
E lá vai eu buscar esse amor por mim
Dura 12h, um comprimido
Depois caio num vazio
Era pra eu dizer alguma coisa, e eu corro e corro
Me perco nas minhas euforias
Pesquiso no Google solução
Eu já fiz tudo!
Eu já refiz para ter certeza
Não
Fico parada vendo as paranoias chegarem
Prevejo o surto
Meus sonhos são infinitos
---
estou distante porque não posso chorar porque não posso amar porque não posso sair porque eu fugi porque eu sinto tudo porque ainda o que nem existe eu senti forte como se já tivesse acabado comigo toda porque acabou comigo e ainda nem existe se não existe como pode ser tão forte tudo aqui uma palavra é bala que me atira só que nunca existiu já passou aqui eu senti tudo eu já morri eu não sei conviver com ninguém porque eu sinto muito eu não sei conviver com ninguém porque sempre extrapolou meu limite mas eu não tenho limites por isso vou pra eternidade com isso aqui meus sentimentos meu amor eterno frágil inquebrável incurável que dança numa onda tinindo pura dor eu sou uma dor bem disfarçada de cor forte que tudo dói um sopro e você me matou obrigada
Da série declarações de amor ao mundo todo:
Você me olhou
Como quem carrega todo carinho do mundo
Me disse:
Sabe o que eu mais adoro em você?
- seus óculos sempre estão tortos.
Eu te conheço há quanto tempo?
Seus óculos sempre foram tortos
E sorrimos de amor.
---
Pareceu feliz
Mas é oco
Da pra escutar o eco da gente
Alguém está chamando
Eu não consigo voltar
Sentimentos deviam construir bombas, e explodir
Esfregar com aço até eu não ter mais cheiro
Um martelo
Um trator
E destruir suas construções
Construir uma desconstrução
Quebrar a ponte que me põe culpa