Aglacy Mary
Sergipe - NE
Aglacy Mary nasceu em Aracaju. Em 2008, publicou o livro de poemas A Lavra. Teve crônicas e pequenos contos publicados em um jornal semanal da capital sergipana, o Cinform, nos anos de 2010 e 2011. No colégio Nossa Escola, instituição particular da capital sergipana, orienta o projeto pedagógico da Educação Infantil, onde se realizam rodas de leitura, saraus poéticos e encontros com escritores.
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Poemas
EM TERCEIRA CONJUGAÇÃO
amar é verbo
mesmo quando conjugado
em ações do maior silêncio.
existe amor que vive
sem explicitudes.
sem ler junto o bilhete da sorte,
sem tomar um sorvete na praça,
sem beijar no meio do filme,
sem recitar um verso,
sem viver um drama,
sem fazer um filho.
amar é verbo
da primeira conjugação,
mas sobrevive na terceira do sentir.
OS VÃOS NOSSOS
as coisas vão.
mas ficam.
nos vãos
da gente,
as coisas ficam.
e vivem.
e vergam.
e vão.
a gente fica
nos vãos
das coisas
que a gente vive.
em vão.
não.
VIDA DE ALPENDRE
há perigos no ter a alma no alpendre,
mas é bem ali que está o viver.
do alpendre
ideias se podem adentrar
em cozeduras de mim.
do alpendre
elas se podem espraiar,
ir além do jardim.
do alpendre a alma se prende e chora.
do alpendre ela se engrama e ri.
CONFISSÃO
eu me confesso.
gosto deste manto
escuro
que me cobre o corpo
desde em volta dos olhos
até onde o chão quase
me toca.
eu me confesso.
assenta-me bem
a longa veste
de noite sem lua
sob coroa de crespos
que exibe da nobreza
o título.
eu me confesso.
guardo em mim,
de Da Vinci,
Newton e Goethe,
toda a paleta.
confesso. sou tudo.
sou preta.
MÓBILE
são de papel de seda
os nossos corações.
frouxamente ligados
e pendurados
num qualquer
retalho de céu,
por um fio de palavra,
uma linha de esperança.
menos que um sopro,
e o balé principia.
tudo em nós é movimento
até o tempo
de não mais ter fim.
OCRE
é de bom-tom
deixar a vida passar
por entre os medos
garimpando erva
desbastando rochedo
até quando
a manhã do último dia
reacende o ocre
da primeira rama
e a noite alta
bebe o rio
da última lama.
Blenda Santos
Sergipe - NE
Blenda Santos é poeta, produtora cultural e foi a primeira representante de Sergipe no Slam BR - Campeonato Brasileiro de Poesia Falada. Nascida e criada no Santos Dumont, bairro periférico de Aracaju, iniciou o seu trabalho com a literatura em 2016. Produz o CPP - Circuito de Poesia Preta, faz parte do Coletivo Entre Becos, é slammaster do Slam Entre Guettos e do Slam Sergipe – Campeonato Estadual de Poesia Falada.
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Poemas
Descarte de escravos no mar mudou o hábito dos tubarões
Escrevo para criar outras imagens de você deitado Para fazer com as próprias mãos justiça E lembrar que aqui não se pode temer, nem se pode esquecer Descarte de escravos no mar mudou o hábito dos tubarões Meu amor, não esqueça de não acordar com uma bala perdida nas costas Eu tenho pressa de voltar, de percorrer na cabeça o caminho de casa Se a periferia é extensão de quilombo, o futuro só pode ser ancestral Estamos à beira do precipício que é sonhar Mas ter medo de acordar, nunca foi uma opção para olhos como os nossos Minha boca aberta é arma É reparação histórica É contar a verdadeira história por eles mal contada Como o amor para quem teve seus filhos arrancados dos braços Para quem presenciou seus companheiros apanhando sem razão Branco até aguenta preto resistindo Mas nunca revidando É inadmissível que todas as dores do mundo Seja a única coisa que eu possa falar
Versos também são escritos dentro do ônibus
Veja, como escrevo feito quem tem pressa de voltar nunca quis nada que não fosse tão ligeiro não me peça para ter calma não me peça para seguir as suas normas poéticas a verdade é que isso nunca me interessou lembrei de um outro homem falando sobre esse negócio não pertencer a um tipo especial de pessoa por isso que eu também sou poeta. mas a minha mãe não sabe ler e os homens não sabem de quase nada pois foi o que faltou nas aulas de português pois foi o que não falou aquele professor que nos pedia silêncio o tempo inteiro] eu odeio a calma, o silêncio e o capítulo do livro que traz um texto sobre o exílio no beleléu daquele cantor de merda que distribui flores versos também são escritos dentro do ônibus um poema não é só como quem começa e mesmo perdendo consegue lembrar de alguma parte] não se pode falar de amor de um outro jeito mas os meninos brancos esqueceram não ouço o canto dos pássaros não vejo árvores bonitas
não me banho em mares tão azuis
e é exatamente por isso que eu também sou poeta
Hoje não é dia de branco
Ninguém diria ser fútil a biografia de um braço
Escrever a história de seus movimentos mecânicos
Irrecuperáveis, perdidos no esquecimento
Veteranos de guerra imaginam dores que ainda sentem
Estralar de dedos, salva de palmas, segurar na sua mão
Imagino que não me ficaria bem fantasiar a reconquista de minha cabeça
Pelos sobreviventes lisos da base da nuca
Alisaram o meu cabelo pela primeira vez aos oito anos
Não houve o que dizer daquilo que não fosse um problema
Imagine a dor de escrever essa frase num poema
Mas eu não posso falar de amor
Amor é privilégio
Sou das que vieram incomodar o sono injusto da casa grande
Pois a partir de agora, decreto
Hoje não é dia de branco
Quando não se provoca barulho algum
possivelmente eu dou risada de quem prefere as palavras que nunca li
procuro sinônimos para não repeti-las
contrario alguma coisa da minha própria cabeça
eu disse: pedro, já pensou se você gaguejar?
o meu tio tentou enfiar a língua na minha garganta
eu fui correndo contar ao meu pai
ele não fez nada
e eu nunca imaginei pedro gaguejando
dia desses dei de chorar como tem sido desde o primeiro contra-ataque
inoperante
quando não se provoca barulho algum
ninguém manda aceitar porque dói menos mas no final de até agora
nunca mais parou de doer
e ainda assim, mesmo sem querer, eu insisto em dizer as mesmas palavras
falar sobre tangerinas ao invés da história que todos esperam que eu conte
falar de novo, repetir até me sentir calma demais e exatamente por isso cansar
quase como acreditar em movimentos contínuos
quase como pertencer a uma vanguarda de qualquer coisa
quase como meninas brancas plantando bananeira sem calcinha
o meu medo da raiva nunca me protegeu de nada
Por Beatriz sou Nascimento, por Gigi sou Poetisa
Diga a Zumbi que é tempo de reerguer Palmares, Maloca, Mussuca, Paioba
Branco até aguenta preto resistindo, mas nunca revidando
Aqui não se pode temer, nem se pode esquecer
Jorge segue sendo amado
E minha palavra é lei, seu trono é o meu lugar
Levante, eu quero sentar
A luta é secular e a nossa história mal contada
Era por isso que Malcolm X botava fogo em casas
A cada vinte e três minutos, um preto assassinado
E o extermínio continua
Tranca porta, tranca a rua
Dessa vez, não tomaremos tudo o que nos foi roubado
Mas vocês não terão paz
Por Beatriz sou Nascimento, por Gigi sou Poetisa
Quando tu brotar no Rosa, respeita as Marias Bonitas
Poesia sergipana, gingo e faço ebó de boca
Sobrenome realeza, veja, aqui é nós quem manda
A minha palavra é revide ao silêncio deles
Minha boca aberta é arma ao silêncio deles
Minha fala engatilhada ao silêncio deles
Toda nossa poesia ao silêncio deles
Clara Dias
Sergipe - NE
Clara Dias é aracajuana, jornalista, fotógrafa, escritora e mestranda em Comunicação pela UFS. Integrou o coletivo Sala de Reboco, no qual participou da realização do documentário Na sala de parto (2017), Entrada de Cor (2019) e das exposições fotográficas Antes de você nascer eu já era depois e FotoSentido. É autora do livro Onde está o garfo (2021), e do single O que não me matou não me fez mais forte.
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Poemas
Onde
Onde se guarda a memória
Quando quem conta a história
Tem a boca soldada
Ao som da festa do homem
Que dá dois tiros pra cima
E do choro da mãe
Sobre o corpo da criança no chão
Onde se sente saudade
Quando as ratazanas da crueldade
São coroadas
E os anjos da noite
Têm as asas rasgadas
Nos dentes podres da fantasia de fé
Onde se ama sem medo
Quando sua forma de amar é selada em segredo
A luz da mulher é cortada na rua
E apagada dentro de casa
Mulher que ama mulher vira dor
Em tempos de jacarés soltos no asfalto
Onde se dorme segura
Quando a doença no ego não se cura
A insônia faz mais sentido que nunca
Gastrite nervosa também
Não se desiste quando a falha vulnera seu eixo gravitacional
Só se resiste, meu bem
Só não se existe
Onde se acolhe em tempos de ódio
Esse profano episódio
Intitulo Aqui
Produtos
Oi, doutor
Boa noite
Suspendi o remédio essa semana
Desmaiei três vezes em dois dias
Não sorri em nenhum
Doutor,
Suas mãos de tesoura cega
Cortam linhas arco-íris
De chegada
Mas não cortam dores
Talvez corações
Seu diploma, doutor
Não te faz comediante
Palavras podem ser dardos
Meu corpo sempre foi alvo
Seu diploma, doutor
Seu diploma não te faz amigo
Não leio poemas nas bulas
Mas leio problemas em paredes
Sem portas ou janelas
Pois é, doutor
Não posso seguir suas metas
Seu sonho fordista morreu em 68
Meu corpo não é escala de produção
Não apoio seu tráfico de perfeição
Tantos anos de desperdício
Em produtos de erro médico
A verdade
Quando bandeiras flácidas hasteiam-se a punhaladas
À doçura dos seus olhos correm meus pensares
E enxergo a esperança sugada do rosto
Como quem perfura poços artesianos
Profunda
A ressurreição das mentiras gélidas
Nega pelo ar outro beijo cálido
Que guardei nos bolsos de um casaco antigo
Na terceira década de lutas platônicas
Para nossos tempos de chuva e de glória
De que vale o peso de saques e mortes
De que vale as cartas desse jogo bruto
Se a resposta se esconde em cada silêncio
E o lábio se fecha para mais uma canção
Vale a limpidez de um amor-verdade
Que costura futuro no canto da boca
Digo-te com a ponta dos treinados dedos
É na doçura dos seus olhos que se guarda a alma do mundo
A vida há de se manter sorriso
Sua visão me seduz aos dizeres mansos
E enquanto preencho tua lacuna em espera
Só nos seus braços hei de respirar
O lado esquerdo da cama
Em noites de lua minguante
Abraço o travesseiro
Deitado no lado esquerdo da cama
E desejo que ele tivesse
Vida e calor para encenar
Reciprocidade
Da janela, vejo a lua rir de mim
Abraço apertado
Olhos fechados
Coxas-atrito
Peitos harmônicos
Mãos de salamandra
Nas costas
Sopros dos trompetes
Da entrada do paraíso
Nos ouvidos
Derretidos
Corpos iguais
Traço tabuleiros redondos
De jogos raros
Conheço bem as regras
Os atalhos
Anos de treino individual
Me dariam experiência
Não avaliada
Onde ela está?
Travesseiro
A lua ri de mim
Como se o brilho fosse dela
Engraçadas essas regras
De português e biologia
Do lado esquerdo da cama
O calor dele é o meu
Brilho no escuro
Sozinha, sozinha
Nas outras seis noites de lua
Minguante
Continuo a abraçá-lo
Deitado, inerte
Travesseiro
Travessia
Ao vazio
Mapas
As marcas que carrego nos braços
São resquícios da identificação de gado
Em brasa
Sinais dos percursos determinados
Pelas vozes diárias da posse
Cicatrizes de guerra, previu o horóscopo
Esse é o ano para deixá-las sarar
Como parar de inflamar
Se cada vez que fujo
Rasgo-me em arame farpado
Território demarcado pela lembrança
Como parar de sufocar
Se cada vez que fujo
Enforco-me em chicotes disciplinares
Direção guiada pela força
Como parar de desistir
Se cada vez que fujo
Pisoteio-me pelos que seguem comigo
Confusão causada na correria
Contenção de danos, sugeriu o guia
Couro grosso aguenta mais
Sigo assustada a galope
Até me esbarrar em percepção
Medos chicoteiam
Reflexos pisoteiam
Espelhos rasgam
Quebrados
São tantos
Cento e trinta e quatro pares de olhares
Para mim
Param-me
Ensinam-me:
As marcas que carrego nos braços
Cicatrizes das guerras travadas por dentro
Também são os mapas que me levam para casa
Joana Côrtes
Sergipe - NE
Joana Côrtes é poeta preta sapatã das águas salobras de Aracaju (1980). Saliente, salgada y sibite, é foliã fogueteira das festas juninas e das feiras livres nordestinas. Jornalista, é mestra em História Social, autora dos livros Linha de Arrebentação (ed. Urutau, 2020), Cospe-Fogo (2019) e Dossiê Itamaracá (ed.Arquivo Nacional, 2015). Integra a nação-quilombo afrobrasileira Ilú Obá de Min.

Poemas
RAZÕES NATURAIS
sou capaz de atravessar as cidades
e saber todos os nomes das ruas
sem nem ao menos ter pisado nelas
só de varrer teu corpo com a língua.
posso ir além para te contar
numa espécie de catequese
que aos nove anos não fiz primeira comunhão,
fiz melhor -
aprendi a amar
em diferentes canais
na mesma época e ao mesmo tempo:
o almofadão da sala
a umidade do assoalho pélvico
a onça pintada que virava Juma que era a Cristiana Oliveira
na vida real da novela Pantanal
mais a duna o coqueiro o céu que era tudo um corpo só
de Tieta do Agreste
em Mangue Seco na fronteira do Estado onde nasci.
Desemboco na curva do teu cotovelo
faço todo e qualquer um dos ossos - o da canela, o do joelho,
o da falange do polegar esquerdo,
roçarem os teus lábios inteiros
sem esquecer também de lembrar os nomes de
Pedro, Benemi, Clóvis
os professores de português de redação de química
do tempo de escola
que por desejarem outros homens
não tiveram o direito de prosseguir
vivos.
De qualquer maneira
todo desejo continua sua própria geografia
e é por isso que não há quem segure
os icebergs
prosseguem a derreter todo verão
quando descubro que posso
flutuar com várias nucas entre as pernas
Desenho a cartografia dos sinais desses pescoços
sem vergonha nenhuma em dizer
a idade que temos.
Anunciá-las é revelar
o quanto de existência carregamos
a rebulir nômades livres e inteiras,
em freiras que amam outras freiras
em poetas que amam outras poetas:
Núbia
Iara
Maruze
Mel
Solange
Acácia
Cida
Laudicéia
Isabel.
A partir da próxima estação,
o que está previsto e acordado entre nós se cumprirá:
as geleiras não mais voltarão.
Manteremos o coração bem guardado dentro do próprio corpo,
sem cacos de vidro ou chumbo ou lâmina.
Toda fauna e flora humana
amanhecerá viva! deliciosamente ao lado de quem quiser
Viveremos bem e morreremos melhor ainda,
sobretudo e exclusivamente
de razões naturais.
COSPE-FOGO
Os filhos passavam ali
a largo
Mesmo ela fazendo vitamina de banana
E cuscuz todos os dias
Todos os dias
Todos os dias
Até que cada um deles terminasse o colegial
O segundo grau
O ensino médio
Conta isso
Tomando sorvete de coco
Naturalmente
Que os filhos passavam ali
Como se não fossem nada
Cada pedaço na boca
Ela diz que não desejaria ao pior inimigo
Aos crápulas
Ao Drácula
Ao Temer
Ao Trump
Aos déspotas
Às formigas trinca-cunhão
A tortura
A insônia
A vontade de sair porta afora e nunca mais voltar
A dificuldade de escolher uma peça de roupa
O modelo o tecido a cor o tipo de botão
Até derreter
Até não sobrar mais nada
As mãos penduradas
Os pés fora do chão
Esses são ainda os nossos tempos:
as luzes brancas permanecem acesas
arbitrárias por todas as vinte quatro horas
dentro da prisão
Nascer boêmia
Viver de bar em bar
numa zona bem longe das ditaduras
Ou fugir com o circo
Ser nômade
Confessa:
É o desejo dela
Para próxima encarnação
Mamãe toma gelado
e fala da danada,
(o apelido que encontrou para não dizer a palavra exata)
[trapacear um nome para doer um pouco menos, depressão]
Como quem cospe
Querosene
Álcool
Gasolina
ou
como quem percorre o aceiro
o atalho de um terreno entre o mato e a cerca
Para impedir incêndios
Para evitar que a própria língua queime.
DINASTIA COMUNISTA
Das coisas que não entravam lá em casa:
pelegos & psicodélicos
sanduíches do Mc Donald’s
Freddy Krueger, Jason da Sexta-feira Treze
Chucky do Brinquedo Assassino
um
dois
e três.
brincadeiras de assustar
o barulho do balanço do moio de chaves
chuveiro elétrico
Adidas, Nike e qualquer banda estrangeira,
a não ser os Beatles.
os amigos de juventude de meu irmão mais velho,
as minhas primeiras namoradas.
a palavra do Senhor
estórias da Carochinha
os mórmons
os ciganos
os gatos de rua
Médici, Geisel, Collor
Ustra, Fleury
Hannibal Lecter
sapatos vindos do cemitério
depois de um velório
as chinelas das crianças com areia de praia
frituras em geral & comida macrobiótica
coca-cola
em nenhum dia comum da semana
catolicamente liberada
somente aos domingos.
ROTA DE FUGA
às vezes é preciso
atravessar
um deserto
para evitar tempestades tropicais.
FARTAS
Minhas tetas são imensas
seguram um jogo inteiro de lápis de cor, de copos, de valete de ouros.
conseguem o prodígio de esbofetear de prazer
qualquer cabeça que se coloque entre elas.
as bochechas entre as minhas mamas
tilintam como uma taça, um lustre de cristal
ou plástico de nona categoria.
quanto mais ordinariazinha a matéria,
mais barulho se faz.
Já vovó eu nunca ouvi gritar nem gemer.
sei que tinha o busto enorme e antigo,
tetas de respeito, tetas agrestinas,
de mil novecentos e cinco.
dizem que herdei de dona Caçula, o tamanho.
as dela, derramaram muito:
pariu quatorze
vivos doze
criados dez: agnaldo unaldo vivaldo maria terezinha joão ednaldo josé edvalson maria do carmo josefa cacilda ana maria.
Uma tabuada indigna esta,
a de ficar prenha por cento e oito meses.
a mãe da minha mãe assobiava pintava as unhas raspava o cangote
quando mulher não
e ia à missa todos os dias às quatro da tarde rezar o painossoavemaria na catedral metropolitana.
ia sempre caminhando, com seus seios fartíssimos até os oitenta e nove
quando
caiu.
até hoje não sei o que ela ia agradecer
ou pedir
na igreja.
Vovó dava leite,
eu dou poesia.
Sou sua neta,
amo mulheres,
permaneço de pé.
com minhas tetas salientes imensas derramadonas,
amamento palavras na livre demanda
sem filhos, sem fé,
e num corpo que, já sabe!, não cabe mais nas próprias mãos.
Manu Caiane
Sergipe - NE
Manu Caiane é MC, poeta marginal, cantora e compositora, arte educadora, pixadora, grafiteira e zineira, além de produtora cultural, atriz e modelo fotográfica independente. É artista do movimento hip hop e integrante do grupo @_artigo163, militante no @coletivobueiro, @poesiamarginalse e @slamsergipe, onde organiza slams de poesia, batalhas de rima, de tags e de passinho.
latitude: -10,9179167 / longitude: -37,0561863
@caian.e

Poemas
ARTE PRETA
Um salve pra todas as pretas e pretos que resistem
Que não abaixam a cabeça e valorizam sua origem
Pras guerreiras do freestyle e os guerreiros do som no busão
Nossa arma é nossa arte, dispara revolta, amor e educação
Não é fácil persistir no sonho quando é desvalorizado
Mas nossa ancestralidade nos mantém firme pra sonhar mais alto
Somos um povo que não aguenta ser mais o alvo
Do estado, da polícia, do descaso e do atraso
E é por isso que chego pra te passar uns versos avançados
Mostrar que revolução é ter o Hip Hop e os blackpower do meu lado
E são as vivências que me trazem experiências, trazem força e paciência pros leões de
todo dia
Resistência, é por nossa sobrevivência
desviando do sistema, isso sim é sabedoria
De mãos dadas com quem soma e não atrasa, olha bem pra minha e vê se como hipocrisia
Não pega nada, tenho a mente blindada, a rua me fez uma rata, estava voltando enquanto
você ia
Filha das matas
Sempre pronta pra caça
Não caio em armadilha
Ando sozinha
Eu mesmo faço a trilha
Mas se preciso, me junto com a matilha
E é sagrado
Vem dos antepassados
Se juntar, pra destruir racista
O rap é o culpado
Por ter nos salvado
Pretos empoderados e longe das estatísticas
POESIA MARGINAL
Vai continuar, me ouvir falar
Sobre minha descendência
Quis me enfraquecer
Quis me derrubar
Foi um teste de paciência
Poesia imortal, sangue marginal
Não vai me ver abaixar a cabeça
Scank imortal, poesia marginal
Resistência é fazer arte e ter a pele preta
A luta é diária
Correria não para
Sem tempo pra quem vive de aparência
Seu som é até massa, mas não serve pra nada
Se nos seus versos você só ostenta
Alimentando o capitalismo
Contribuindo com o extermínio
Pois se os nossos estão no corre louco acredite é por sobrevivência
Tá na essência, não fechar com o errado
Corpo tá fechado, mantendo a transparência
Aqui é gangstência, rata de bueiro
Na luta por justiça, 163 não se ausenta!
Tem que respeitar a história, Hip Hop não é sobre moda
Tentam se apropriar, mas como diz Dk: não tem o peso do Brooklyn nas costas
Cês não seguiram a revolta
Resistência dentro de resistência
É tipo nois pixa os muros
Cês apagam apagam e nois volta
Sem linha torta
A paciência já anda pequena, sem perder tempo com gente idiota
Isso é o que me revigora
Quando pensarem que eu desistir, mostro que não tô sozinha
Isso é o que me revigora
Quando pensarem que desistir, volto cobrando nas linhas
Escrita sagrada
Poesia escrita sagrada
Expressando o que sinto, brinco com as palavras
Essa é pras matriarcas que é a base de tudo
E sem elas? O mundo para
Não desisto do que acredito
E meus guias comigo sempre pra não me deixar cair
O caminho quando é sofrido te ensina a ter fé
E é no sorriso que acabo com quem me quer infeliz
Tô cansada de ser perguntada quando sai o clipe e o som de quem pode mas não ajuda a
produzir
Transmitindo mensagem reflexiva também conhecida como MC
Preta, tatuada e MC
Não queria mas eu vim
Representar as que vocês mataram achando que seria nosso fim
Eu valorizo minha raiz
Pois eu sei de onde vim
País miscigenado
Pois estupraram minhas ancestrais
Escrevo com sangue isso aqui
Escrevo com sangue isso aqui!
O que temos passado
Não é por acaso
É fruto do atraso
Ocasionado pela escravidão
Não é novela, nem ficção
Corpo estereotipado
E pros que pagam
De favelado
Eles não erram o alvo não
Quando o assunto é mandar pro caixão (pro caixão!)
Falta de Sorte
Eu nasci mulher, acho que não dei muita sorte
Pois quando vierem me agredir, ninguém vai meter a colher
Eu nasci mulher, acho que não dei muita sorte
Pois vou ser criada e educada para fazer o que você quer
Para te servir
Para ser infeliz
Sem prazer e só culpar e dor sentir.
Me diz aí, por que você ri de mim?
Porquê você quer sempre me diminuir.
Me chama de Vadia por eu sair na rua
Me assedia todo dia, alegando que estou seminua
Acho que isso acontece porque não te ensinaram que você deve me respeitar até se
eu estiver completamente nua.
As escolhas são minhas, não suas
Você não vai mais encostar nas minhas curvas
Muito menos na minha alma
A qual foi enganada, quando achou que estava sendo amada
Eu sempre ouvi dizer que todo carnaval tem seu fim
E assim como a minha ficha, a sua máscara caiu
Mostrando o reflexo dessa sociedade machista, misógina e hostil.
Doentio
O que você sente por mim não é amor,
É sentimento de posse, ciúme doentio.
Mentiu
Quando falou que estávamos juntos
Mentiu
Quando falou que estava comigo
Mentiu
Eu estou sozinha, eu criei afeto sozinha
E agora você quer que meu lazer seja a cozinha
Que meu prazer seja cuidar das crias
E a noite?
Bem, a noite é fria
Você me tocando, aquele cheiro de álcool
Eu não queria
Gemia alto de agonia para ver se você sumia
E no outro dia, tudo se repetia
Até quando?
Até quando a sociedade entender que somos iguais
Que o respeito vai além de ideias
Que inferior é a violência
Que machuca e nos faz perder a essência
Tendência, que a paz vire frequência
Pois só se colocando no lugar do próximo para saber como é ruim se sentir inferior
Como é ruim acordar todos os dias sabendo que pelo meu corpo você sente pudor
Esquecendo que tenho sentimentos e que por mais que você só veja maldade, eu
sou AMOR!
RESPEITA O CORRE
Chegando sem moleza
Pulando qualquer catraca
Que impeça minha entrada
Ou triunfo na chegada
Não pense que me abala
A sua cara assustada
Por não ser um garoto
E sim uma mina de saia
Pode ficar de cara que eu vim pra incomodar
Tô chegando na cena e vai ser representar
Fazendo o meu corre pra lá encima chegar
Não vou atrasar ninguém, pra ninguém me atrasar
Os meus melhores planos realizei em silêncio
As minhas boas escolhas são frutos do meu bom senso
Tentaram me atingir, mas filtrei meus pensamentos
Não deixei de seguir, o que trago aqui dentro
Desejo de sentir o gosto da liberdade
Desejo de fugir dos pilantras e da maldade
Desejo de lutar até obter a igualdade
Desejo de pixar cada muro da cidade
Não basta desejar, tem que ter fé e atitude
Lembrar que a coragem é uma grande virtude
Dos prazeres da vida quero que você desfrute
Tem que fazer valer, bora irmã não se ilude
Não tem conto de fadas a verdade é fria e crua
Querem você em casa, enquanto eles estão na rua
Faça ele entender que você não é dele, você é sua
Você veio pro mundo não de burca e sim nua
Pode acreditar se ele pode, você também pode
A diferença é que ele que tem o Ibope
Não precisa de muito pra que o mundo te note
Basta na jogada não ser louca e sim loke
Que muda de forma mas com a mesma intenção
Que fala de amor pra tocar seu coração
Que vem de mansinho querendo atenção
Que não te encoraja e só quer sua submissão
Que diz ser parceiro mas te deixa sozinha
Que enquanto ele chapa você na cozinha
Que enquanto ele sai você fica com a cria
E quando ele volta, ainda quer dar uma fodinha?
Não sou sua empregada, meio de reprodução
Se não for pra me ajudar, nem levante sua mão
Tô cansada de ver mulher nessa condição
Vai ter mulher no rap, na rua e na pixação
(Pega a visão…)
O tempo passou e a gente tá em desvantagem
Mas a gente chegou e agora vai ser sem massagem
Falando sobre nós e nossa realidade
Com minha bike sem freio vou seguindo essa viagem
Renata de Castro
Sergipe - NE
Renata de Castro nasceu no Rio de Janeiro, mas vive em Aracaju há mais de 30 anos. Professora de Língua Portuguesa e Francesa, mestre em Linguística e, atualmente, doutoranda em Literatura na UFS. Dedica-se sobretudo à escrita de versos. Tem dois livros publicados: O terceiro quarto (Ed. Benfazeja, 2017) e Hystéra (Ed. Escaleras, 2018). Tem também poemas publicados em diversas antologias e revistas literárias. Seu terceiro livro, De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Ed. Escaleras, 2021), está no prelo.
latitude: -10,55696 / longitude: -37,4029262

Poemas
Minguante
Da ampulheta em meu ventre
granula areia
Escorre finito ciclo
pelo sangue que se escassa.
A láctea lua cheia
agora míngua
seca
na desertificação da pele
ainda terra.
Vida outra é.
Aflorada
não frutifica
Estriada,
em profundas ramificações,
se enraíza.
Hystéra
Já teve nome
Para os antigos gregos,
era uma fera
Para mim, fome
Animal entre vísceras incontido
não se aquieta
E berra
E berra
Consigo ouvir o grito!
Ser selvagem noturno
move-se sob a pele
E mexe
E mexe
Nas carnes o afundo
Para os antigos gregos,
besta a ser domada
de natureza toda líquida
Para mim, apenas ávida
Surra meu ventre
E urra
E urra
De força pura
De todo peso
Bicho-Desespero!
---
No tempo em que sou
órfã e envelhecida
estrangeira de mim, peregrina
Sou vazia e inversa
Não sou essa
carne morna que transita
carne viva
cicatriza
Endurece ou se liquidifica?
A cada momento ido,
o que de mim fica?
o que de mim resta?
o que há de mim neta fresta
chamada vida?
Ensinamentos de Safo
Se bacantes
fossem-lhes negados
dionisíacos festejos,
não seria Príapo a fazê-las sofrer.
Tradição antiga
de Lesbos vinda
ensinou que consolo
nem de madeira
nem de couro
o amor sáfico
no gineceu era a brincadeira
de poesia
nas femininas pontas das línguas
de melodia
no dedilhar das mútuas liras.
Thainá Carvalho
Sergipe - NE
Thainá Carvalho é escritora e colagista e formada em Comunicação Social. Também atua como curadora e revisora literária. É criadora e editora da Revista Desvario, uma publicação digital voltada à difusão da literatura contemporânea criada por mulheres. Publicou de forma independente o ebook Síndromes, e lançou o livro de poemas As coisas andam meio desalmadas (Penalux, 2020). Já publicou em revistas e portais como Revista Aboio, Toró Editorial e Ruído Manifesto. É coorganizadora do Sarauema e idealizadora do projeto Vai que Cola, voltado à causa animal.
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Poemas
Velhice
Respiro
como se nada fosse
o que deveria ser,
como se o cachorro na sala
não fosse meu
mas um grito incessante do espírito
que me puxa pelas mãos enrugadas
em um tempo que também não é meu.
Não me sinto aqui
corpo presente de olhos que tocam
mãos sentidas de olhos pelo corpo:
ninguém me vê de fato:
meus cabelos brancos
quase transparentes
e a voz gemida
não gritam,
apenas chamam de volta o passado azul
em domingo de praça
sim, as tardes são remexidas
em um memória dolorida e triste
feito filha parida e suja de sangue
nem
todo
sentimento
se lava,
nem os restos de pele escorrendo pelo ralo
nem o resto do corpo parado na sala
aqui sentada
só meu cão me afaga
mas ele já morreu há muito tempo.
Para os ambientalistas
Há sempre abelhas mortas sobre a mesa
sob a janela, os ínfimos corpos
mutilados
penso a equação severa dos fatos
e atropelamentos que levaram ao desapego
de seres tão pequenos, subestimados
na beleza das pétalas
e do mel
essa melancolia
de mesa assim enterro
corte profano e profundo
das futuras flores do mundo
em desespero, me pergunto
o que sonhavam as abelhas.
Bússola
Pensei te encontrar aqui
nas feridas abertas de uma primavera gasta
sem flores
sem abraços
sem sorrisos de antepasto
aqui onde pensei te encontrar
em meio às feras adormecidas
entre a porta da frente
e o murmúrio do sol
uma tarde entorpecida
whisky à mão e o mar
nos ouvidos
esse encontro não seria romântico
nem lunar,
seria a nudez necessária
ao nascimento do norte.
Algo só
A casa segue muito só
desabada sobre o chão sob o céu
semente seca ao longo do caminho
e das saudades, as paredes lembrando
o cheiro das mãos erguendo tijolos
o vento da roupa no varal
a água do poço, o mandacaru à porta
onde já não se batem mais os pés
nem o lampião se acende para adivinhar
os cantos tão pequenos
A casa segue muito só
chorada da beira da estrada
um pranto de passos sem retorno
que o sol esconde no meio do cerrado
e à noite, quando vêm espiar as estrelas
as janelas e as frestas em busca de um riso
veem o vazio no chão batido
os ferrolhos frouxos, o teto carcomido
e entristecem pela solidão do tempo.
BR 235
Quase não sei de ti
entre as estradas e os carros que passam
quase não sei da tua forma difusa no banco do carona
me falando de hipérboles e ascensões
sob a chuva mais forte do planeta
Queria chegar logo à casa dos nossos anos
ao pulo do gato nos muros de classe média
mas você me fala dessa viagem pela Índia e dos elefantes
em eterna e diabólica parada
Quase não sei de ti
e ainda insisto nos teus cabelos e na tua água iluminada
como se a desistência fosse um fogo que nunca se apaga
e a gente não morre nunca
e o tempo não chega nunca
a parar de fato
para descermos do carro
calçarmos os chinelos
e go our separate ways.
Surdez
Sempre o som
esse som
agudo e seco
sussurro
e medo
não sei de onde vem
ou a quem pertence
esse ganido
essa semente
de algum pulmão
ser minúsculo
e coisa ao mesmo tempo
que aparece
quando menos espero
das pétalas das flores
ou das caixas de sapato
esse som
humilde e severo
me persegue
julgando-se
jogando-me
nas paredes
às vezes está em mim
implode os dentes
grita do fígado
em ato contínuo
sempre o som
e vêm os vizinhos
perguntar
que barulho é este
e eu respondo, em lágrimas
-são as faltas