Ágda Santos
Roraima - N
Ágda Santos, cria de Roraima, escritora, editora e trabalhadora humanitária. Foi mediadora do #LeiaMulheres em Boa Vista e possui um livreto de contos publicado e distribuído gratuitamente chamado Pó, Poi. Também publicou em coletânea de contos.

Poemas
Sete Na Pá Dourada
você não comemora comigo
o que eu construí.
somos bem legais. Nós.
saiu da escola. Nós.
nascida no extremo norte
não-branco e mulher
o que Eu vi ser exceto Eu?
espreita tarde. Nós
golpe em linha reta. Nós
aqui nesta ponte entre
mirante e argila,
minha mão segurando firme
minha outra mão;
cante o pecado. Nós.
nós nos dedos finos. Nós.
venha comemorar
comigo todos os dias
já é junho.
algo tentou me matar
e falhou.
Paraporisto
Isto é para os solitários,
Os mais velhos,
Passou agora
Silenciado pelo tempo em alta velocidade
Menos significativo do que uma vez antes
Assediados pelos objetivos que não alcançaram.
Consumidos pelas falhas que assombram suas horas finais,
As decepções, os erros, a malícia,
O apego ao que nunca foi ou jamais seria.
Isto é para pessoas comuns manipuladas por desejos
Vendido a eles desde o primeiro grito de nascimento - a inocência da juventude
Condicionados por instituições, religiões, governos,
Comércio e líderes equivocados do mesmo.
Isto é para o meio heróico, mantendo o melhor que pode.
Às vezes, muito longe das diferenças de ataque certas
Percebidos como ameaças ao estilo de vida
Eles passaram a vida construindo.
Às vezes, longe demais para a esquerda, uma tradição implacável
Propagando uma visão absoluta de uma humanidade "deveria ser",
Condenando a injustiça de poderes não alinhados com os seus.
Isso para o meio termo, o ponto de perspectiva
Que vê erro dos dois lados, que nota a hipocrisia
De todos os bombardeios retóricos e preconceitos.
Para aqueles que podem e fazem amizade com um inimigo
Para atributos encontrados amigáveis.
Para aqueles que se recusam a aceitar
Pensamento puritano esquerdo ou direito.
Para aqueles que buscam e concedem arrependimento,
Quem perdoa.
Por verdades científicas e observáveis
Colaborado por mentes honestas de investigação.
Por consenso além da democracia em pontos percentuais.
Para ideais que podem estar além do alcance mortal,
Para esperanças que podem não ser mais que miragem,
Por virtudes cantadas, pintadas,
Elenco, forjado, dançado, pregado, rabiscado,
Bem elaborado, berrado, sussurrado,
Passado em segredo, gravado nas paredes da prisão,
Expressado através do laço sufocante da corda de uma forca,
Orou, trabalhou, chorou,
E perseverou.
Pela possibilidade de que a existência
É mais do que a busca cínica da riqueza material.
Para aqueles que um dia podem desistir de seus modos avarentos
E gastam livremente seus bilhões na melhoria da terra.
Para aqueles da extrema esquerda e da extrema direita
Isso pode voltar à média de ouro
Diferenças comprometedoras para o benefício de todos.
Para uma revolução auto-expansível em evolução
Em um milhão de milhões de almas individuais
Iluminado à perspectiva de que toda a vida possa viver junto como Um.
Para aqueles em risco de serem silenciados por excesso de velocidade
De pé e pronunciando, cantando e dançando
E tirando das profundezas da história e do conhecimento
Os sonhos dos mais velhos, dos solitários, dos silenciados
Morreu por.
Metáfora
como se estivéssemos
no quintal descansando
em cadeiras de praia, olhando para cima
diga-me qual o centro da nossa galáxia
cheira a mamão e tem gosto de gin
que em algum lugar além da poeira
nuvem de Cruzeiro do Sul
uma guitarra toca
segure seu bastão do dia do juízo final
a conduzir os insetos
uma ca
co
fo
nia de grilos
e instrumentos alados crescendo
com o show de luzes acima
uma exibição brilhante de explosivos
todos os b o o m s literários
e P O P
mil sóis
a maneira como os astronautas descrevem o espaço sideral
como metálico, com cheiro doce
como pólvora e carne queimada
crie uma metáfora
como no verão
choramos fora da existência
chiar. chamuscar. evaporar.
A Força de um homem
Colocado aqui
Com sua publicidade passando pelos meus olhos
Como desenhos da vida de outras pessoas
Eu começo a pensar
O que é preciso para ser um Homem?
Bem, eu aprendi a beber
E eu aprendi a fumar
E eu aprendi a contar
Uma piada suja
Se isso é tudo o que existe, então não há sentido para mim
Então pergunto por que estamos vivos
Por que tudo o que você faz parece uma perda de tempo?
E se você ficar por muito tempo,
você será um homem
Conte-me sobre isso
Seu carro pode chegar a cento e dez
Você não tem para onde ir, mas vai lá novamente
E nada nunca faz diferença para um homem
Então você tropeça na cidade com o estômago em reviravoltas
Mostre a eles o que você tem (embora eles tenham visto tudo)
Sim, você é uma beleza, mas eles já viram seu tipo antes
Você não precisa
Mas você ainda quer
Ir e reservar
Aquele restaurante
O vinho fluirá
E então você vai voar para longe
Então, por favor, posso perguntar por que estamos vivos?
E nada nunca faz diferença para um homem
Para um homem
Para um homem
é isso que eu sou.
rubato
Os dedos calejados não podem
tocar as cordas com muita
graça ou garantia mais,
e o tempo é sempre
rubato, parando, mas ainda
esse som - notas tremendo
e claro em sua singularidade,
criando memória pela casa -
dores com pura intenção,
melodia de alguma forma mais bonita
como remanescente do que
seja lá o que costumava ser.
Eli Macuxi
Roraima - N
Eu sou elimacuxi, assim, com a letra minúscula de quem tem a humildade de saber-se integrada, em nada original, paulistana tragada por uma cultura que adicionou açaí, tambaqui e paçoca ao meu prato de lasanha. É na Roraima cada vez mais venezuelana e guianense que amadureço e compreendo as relações com minha ancestralidade e com as teias históricas que me envolvem, tanto para proteger quanto para sufocar. Sou poeta, esteta, cientista da História. Entre tantas coisas, sou amazônida.
latitude: 2,8371949 / longitude: -60,6806073

Poemas
Revolução é mulher
Você concorda, decerto
que o mundo precisa de conserto, não é?
Pois bora prum papo aberto?
Se quiser você pode
fazer do café seu perfume matinal
pode ou não cuidar das plantas no quintal...
mas se quiser também pode
não saber cozinhar um ovo.
Esqueça a voz do povo!
Você pode querer ter filhos
ou não
pode sonhar ser engenheira espacial
e ser! Aqui ou no Japão.
Você pode dirigir um carro de fórmula 1
lutar MMA, pesquisar fauna marinha e viver a mergulhar
ou adotar gatos, escrever poesia e decidir que
o melhor pra você é simplesmente consigo estar.
Ah, também pode decidir tudo e depois
simplesmente mudar.
A liberdade de ser é o melhor presente
que podemos nos dar.
Então seja, mulher
seja bela sendo a luz que a ti revela
você pode ser gorda, alta, negra, baixa, velha, branca,
nova, indígena, magricela ou malhada
ter a pele sobrando, em dobras, ou esticada
limpa como veio ao mundo
ou toda tatuada,
os cabelos lisos ou caindo em cachos
ou não ter cabelos!
você pode tudo, ouça seus apelos
o que eu penso e acho
é que é muito tonto quem tenta
não reconhecer que ser mulher, agora e aqui
independe de qualquer condição
não tem receita,
somos tantas e diversas, trans, cis e travestis
todas donas dessa energia...
Feminina é a força que move
a revolução que esse mundo requer.
E ela virá, da nossa força em sermos quem somos
dentre tanta coisas
a revolução que o mundo precisa
será feita pela mulher.
Reescritos
Palimpsesto é nossa história
Incômoda nossa antropofagia
Rótulas no chão
Embriagados de poesia
negamos os rótulos
rastreando com os poros
cada fluido
desse desejo bem resolvido
por segundos que duram séculos
simplesmente somos
- sem metas nem diretrizes-
isso que tanto assusta
nesse mundo desajustado:
absolutamente felizes.
Pessoa em carne viva
A carne, ainda viva,
pulsa pedindo piedade
acumulam-se sob a pele
dores, quilos, raivas, medos
no enredo
pegadas de sangue
postes, putas, proezas perenes
paisagens pregadas na retina
trabalho, flores, gatos, horas, dias...
nada,
ninguém é refúgio
no escuro de dentro
que o sol não respeita
a carne grita crua
que o deserto
sou eu.
Louboutin
Um salto, claro,
para um momento raro:
deu a si o presente tão caro
e, tomada de ânsia e perdão,
pisou com os dentes e engoliu
o próprio coração.
No ventre blue de minha mãe
Volto a São Paulo como se voltasse ao útero
enorme e disforme útero blue.
Jovens descolados
ainda andam sós ou em bandos
ainda falam alto ou fecham as caras
cheios de certeza de que o mundo lhes serve.
Reconheço artistas, ambulantes, moradores...
Da rua
em cada esquina do Jardim Paulista
o cheiro de marijuana e tabaco,
marijuana e incenso,
marijuana e marijuana,
se instala e atravessa minhas narinas:
Ali um par de motoboys no almoço
Lá dois barbudos com coletes sujos e pesados de couro
Aqui um rapaz com camisa de clube e duas meninas.
Observo o augusto desfile
das mulheres elegantes, homens despojados
Rumo ao Centro e nos limites da Liberdade
se me escancara a realidade de cada um
disputado ou negligenciado
por igrejas, igrejas, igrejas
e sinagogas e centros e mesquitas
e partidos e lojas
e lojas
e lojas
onde curiosamente se empilham
cruzes, elefantes, olhos gregos e figas...
sim, há ainda fé, fragmentada, diluída
como há o eterno aviso de "não toque"
nas antiguidades, nas jóias.
Há arte invisível em todo canto
enquanto os olhos colonizados
são atraídos para o anúncio de quinze metros
da nova série de garotos brancos
do serviço privado de TV.
São Paulo é essa pilha de desejos
vivos, toscos, ocos, secos,
depositados sobre objetos e objetos e objetos
mais sagrados que os corpos abjetos
que se estendem com vida
e frio
e fome
pelas calçadas
aqui
ali
e lá
sob as marquises da Paulista.
O semblante cansado
ainda predomina no metrô
inúmeros cristos crucificados dormitando de pé
pendurados pelas mãos
pregadas para o alto
no trem que se arrasta
vagarosamente sob a chuva
para a zona leste.
Crendo-se o sangue desse imenso nada
a imensidão de corpos mansos e amansados
segue feito um rio de gente pelas escadas rolantes
escorrem sendo o sumo da cidade menstruada
líquido aborto,
do suor o sal, extraído, excluído
vertido nas linhas amarela,
azul, coral...
Milhões de vidas contidas em vagões e caixas de cimento
árvores maduras voltam seus galhos aos céus
descobrindo-se incapazes de retirar, da luz, seu alimento.
Flores de resistência rosas e amarelas
são pisoteadas nas calçadas
nas manhãs de primavera,
mas em qualquer estação
tua cor segue cinza São Paulo,
nas ruas e calçadas e muretas que resistem
enegrecidas pela tua
"anticorrupta e moderna" poluição.
Eu, tua filha ranzinza
retorno, vejo, fujo
pois muito te amo mas também odeio
e sigo não desejando teu doentio seio
E sigo dizendo que te quero,
minha Sampa,
mas não te quero não.
Elisa Coimbra
Roraima - N
Elisa publicou os livros (sem título), em 2019, um híbrido de prosa e poesia; mó, em 2020; e, em 2021, trabalha no seu terceiro livro: O parto natural dos dentes, que será publicado em formato e-book; (re)interpreta tecnologias mirando a decolonialização artesanal do status quo.
latitude: 2,8679603 / longitude: -60,6507939

Poemas
eu me aproprio dos espaços que você me dá
e você se apropria dos espaços que te dou
e estes espaços são tão diversos
mas todos convergem em algo parecido
com o lugar exato em que se constrói um castelo de areia
bem pertinho das ondas
em dia de maré cheia
---
mãe,
me recuso a dizer amo a senhora
porque não cabe na mesma frase isso de amar algozes
mas em troca digo te amo
como quem fica muito feliz por desmontar um dificílimo quebra cabeças
---
não os culpo
(culpo sim)
culpo a mim
(mentira)
pelo ocorrido
(na verdade,
foi por outra coisa)
digo calada
(gritando)
as verdades
que me moram
(que são
apenas mentiras)
digo que sinto muito
(sinto nada)
aos meus entes queridos
(nenhum).
sorrio bem externo
(choro bem profundo)
acordo todo dia
(morro a cada segundo);
olho para tudo
(não vejo nada)
conto os
meus sentidos,
são muitos
(contabilizam nenhum);
se assopro uma vela,
eu sorrio
(despenco em solidão,
só choro
quando sorrio)
quando eu vi você passar
(eram pedras),
tropecei em ti
umas mil vezes;
eu queria
(embora internamente
eu negue)
---
nós, que lavamos nossas calcinhas
que lavamos em nossos fundos
àquilo que pelo foi segredado
que dedicamos canções e gestos à memória
que esperamos acordadas pelo sol
e que sempre diminuímos o passo num passeio
é que estamos acostumadas a andar rápido
nós, que morremos simbolicamente
e acreditamos no dia seguinte
nós que lavamos nossos fundos na corrente de uma cachoeira, porque ela tem a engenharia perfeita para lavar nossos fundos
nós que tivemos a coragem do perdão
e muito mais a coragem do desprezo
que falamos de outros tipos de coragem para além de continuar existindo como pular de paraquedas e lançar um livro
nós que não fomos queimadas e tampouco seremos algo de sereia iluminada, muito menos oremos
nós que fizemos da questão filhos
mais do que fez biologia
nós que gostamos de frutas durante o banho
e que curtimos uma pele macia
nós que perdemos o medo das palavras
que arriscamos metonímias, e sentimos tara
que nos sentimos inseguras e sempre iremos, e sempre iremos tentar sentir menos
nós que não sentimos muito
e que jamais poderíamos comparar uma vontade de chorar tão forte com uma vontade tão forte de sorrir
que não nos envergonhamos por andarmos descalças
que cerramos os dentes quando com raiva
e as vezes a unha arranha a lança, quase sempre na verdade
a parte em seu completo meio
nós que afiamos nossos dentes num pedaço de palha ou na pétala de qualquer antúrio
nós que não vestimos calcinhas
lavamos nossos fundos debaixo da queda d’água de uma cachoeira porque nesta cachoeira
somos
---
no direito eu digo venhas
vou mastigar-lhe as dúvidas
processá-las as vanguardistas
mães de todas as coisas,
até das estrelas velhas
que brilham no céu
como um sorriso de dentes amarelos
este sorriso vai morrer,
filha minha
é que não aceitamos um sorriso morto,
as estrelas que enganam, neste caso
de se encantar tanto por algo do ido
irmã de todas as beiras e pleuras
as poeiras coçando em nosso
átrio engarrafando as lágrimas
elas escorrem porque a face
é o córrego perfeito e
o design das cidades bem que poderia
mas não
há muitas entupidas, sem reação
reacionam um sistema inteiro
o colapsam, o universo
inteiro debaixo de nossos dedos
ainda é o passado se tornando
nesta casa agora, neste lavrado extremista
não há conta gotas contra as doenças
perniças e muito menos contra a maior
perguntas sem respostas
você vai morrer mais breve que
o silêncio das asas de um beija flor
tua única soda cáustica a corroer
o embrulho que se forma fácil
esta é a única certeza, diamante
mas puro, inegolível
grudado na rocha
da caverna de tua boca
Isabella Coutinho
Roraima - N
Isabella Coutinho nasceu em Boa Vista, no mês de abril, no início das chuvas. É professora, estuda línguas indígenas, observa mais do que fala, pensa mais do que escreve, mas segue amando as palavras e os sentimentos dentro delas.
latitude: 3,2645776 / longitude: -61,1652822

Poemas
Podia ser
Inteiro
Podia ser mão
Podia ser chão
Podia
Ser mais um
Dia
Podia ter
Podia não ter
Tido fim
Podia olhar
E não ver
Podia ser
E não estar
Podia des-
Crer
Podia ser tão
Pouco
Podia ser
Ou não
- mas é imenso.
---
a água do rio me tornou doce
firme nas ideias
pés – raízes plantadas no chão
a água me empurra e me dissolve
assim como a água
sou toda líquida
e trago em mim cardumes
de pensamentos inacessíveis
mas um terço do que sou
tem o sabor do sal
e as profundezas
do que não vejo
nem compreendo
pertencem a uma parte de mim
assim
abissal
---
este objeto
que antes era extensão de minhas
mãos
agora parece do corpo um pedaço
amputado
estas palavras
que antes fugiam tão fáceis
agora me soam assim
ventríloqua
estas folhas em branco
que antes bordava ponto a
ponto
com palavras-nós
agora rotas restam e se desfazem
em pó
---
o homem é feito de barro
e hábito
o homem acostuma
falar sentir fazer olhar
e diz que ama
a necessidade preenche
o vazio do querer do homem
a costela de cerâmica
está oca mas não cabe
(ele não sabe)
o seu sentimento
o hábito faz o homem
homem que escreve
homem que lê
o homem de barro desmancha
na água
(ele não sabe)
do meu sentimento
---
trago no peito
as janelas e as portas
necessárias para fugir de mim
agulhas
linhas
necessárias pra tecer uma rede
e dormir
trago no peito
ânsia e vontade
calmaria e tempestade
trago na ponta dos dedos
pudor e paixão
escrevo friamente
o que pulsa arde vibra
a combinação certa de elementos
pode gerar vida
ou entrar em combustão
trago no peito a chave
solução de quem busca alívio
o mundo dentro de mim
meu refúgio
exílio
Sâmia Kapon
Roraima - N
Sâmia Kapon é fogo, segundo seu signo e sua mãe. Filha do Norte e neta do Nordeste, transita entre o som e as palavras. Poeta, pesquisadora e produtora cultural, Sâmia troca fácil todas essas palavras por um só adjetivo: arteira, aquela que faz e se identifica com a arte em todas as suas formas.
latitude: 4,1659284 / longitude: -60,9670584

Poemas
Poema à musa
A musa pode ser puta
Ser dela mesma a fantasia maior
Na segunda, na terça,
Na quarta de cinzas
Usar chicote e salto
Ser sade
Ser maso
Ser só o que quiser ser
Tudo
Nada
Dona de casa
Dos casos
Do acaso
Ser vida
Ser vadia
Mas
Ser
Só o que quiser ser
[inclusive poeta]
Poema órfão
Do ódio que te tenho
Nascem os meus filhos poemas
Frutos órfãos de nosso amor.
---
Quero ser tua
Musa, puta,
poeta Bruta flor
Ser dos teus
beijos Fonte de
desejos Em horas
de amor
Amiga
Namorada
Amada
O tudo que for
Mas não me prive
Das mãos que me afagam
Dos lábios que dançam com os meus
Da voz que recita a buceta que
lambeu
Quero escrever sobre pecados
Sobre a cama
Nosso altar no quarto
Quando o mundo já não existe
Apenas as borboletas resistem
Dentro de mim
Que braços sejam
versos Pernas sonetos
Eu toda poesia
Alimento pra todo
dia Água que sacia a
sede Cheiro de nós
Parto
Quando pari
Não pensei em nada
Apenas vi nascer
Palavra
Teoria do Romance
No Romance cabe tudo
Cabe a bula do remédio que cura
Cabe a receita do prato que alimenta
Cabe o preço do feijão.
Só não cabe nós dois
Pois tu não me amas
Flores
Tenho a mente
suja, roupas sujas
e um coração pulsante
que me rasga em batimentos
Tenho medo do
futuro de vinhos pela
metade
de como me chega a cor azul
Tenho uma boca cheia de
desejos palavras absurdas
(escolhidas para serem censuradas por ouvidos alheios)
Na bolsa Ana Cristina
Cesar cigarros
maquiagens para a vida
(uma aquarela de rabiscos ilegíveis)
No peito pétalas
caídas de um
amor que tu me
flores.
Assassinato
Quis te matar às 5h
Na esquina da perimetral
Levei na bolsa
Minhas armas
Batom vermelho
Boca afiada
E a vontade tresloucada
De simplesmente
Eliminar
Aquilo que existe no peito
Que transborda nas manhãs
Quando a luz bate
E a noite quando a tempestade castanha
Inunda, invade e desmorona
Os alicerces do que penso meu
Como planejado
Os membros foram esquartejados
As pernas foram jogadas no quintal abandonado do vizinho O tronco dei pros urubus da rua da feira
Na lateral da biblioteca (por amor ao ofício) enterrei as mãos O coração entreguei ao rio
Quatro dias depois
Por teimosia, cansaço, preguiça ou puro caso de relógio atrasado O corpo ressuscita ainda mais ateu
Mais sem vergonha
Cheiroso e de unhas cortadas
Palavras na boca
Desafiavam leis e reis
E dentro de um sorriso toda a concordância se desfez
Foi se aproximando
Até eu sentir o ar que sai de ti
Tocar a pele
Romper a barreira da epiderme
E penetrar em mim
Acordei,
Pensei em chorar um pouco
Lágrima já não tinha mais
Pensei em te beijar um pouco
Vontade já não tinha mais
Pensei em correr mas
Pés já não tinha mais
Ô menina,
mas que coisa essa tua sina
De matar e morrer de amor.
Sony Ferseck
Roraima - N
Me reinventei como Sony Ferseck só para poesia. Nasci em 1988. Me fiz gente (e poeta) em Roraima. Ando me fazendo indígena no meu lugar, coisa difícil e caminho duro que anos de colonização e preconceito ainda hoje querem me negar a ser. Sou formada em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) onde também participei do Programa de Pós-Graduação em Letras na linha de pesquisa de Literatura, artes e cultura regional.
latitude: -1,4672754 / longitude: -48,461258

Poemas
nós mulheres invisíveis
aprendemos pela casa
a linguagem dos cômodos
apertando entre os dentes
nosso silêncio de sangue
empurrado pelos quartos
como os filhos que teremos
& que nos odiarão pelo espelho
(mas ainda assim o espelho virá)
nós mulheres domésticas
desaprendemos do nosso antigo nome
que antes dizia bicho rio sol beija-flor
pra virar água de batismo-catequese-castigo
rima qualquer entre o som & o desprezo
que não grita mais a palavra deus
(mas ainda assim dito)
nós mulheres silenciosas
muito menos parecidas com as outras
vivas ou mortas
guardamos entre as pedras os ossos
dos homens que jamais nos predisseram
assim como a eles
só nos restam cantigas rupestres
incrustadas nos ermos de não ir
(mas que ainda assim iremos)
que não se enganem
toda aquela que faz silêncio
guarda o intocável
assim permanecemos
tecendo a vida como a
fibra de um ornamento
uma língua de fumaça
que só diz palavras de cura
afiando a lâmina pela terra
em luta
nós mulheres infinitas.
* Para as mulheres indígenas.
---
do barro arde
-dura
minha existência
que do dourado
espalha sementes
de Wei*
toca minha irmã
teu chocalho kewei*
canta minha irmã eren*
nossa peneira
nosso ralador
mastiga minha irmã
nosso lavrado
de fumaça & palha
nós o reacendemos
pinta minha irmã
de tawa* a água
tinge minha irmã
de preto as palmas
nossas asas
também são deus
nossos lábios
também são deus
& Wei nossa mãe
nossa filha.
*Sol em Macuxi.
*Chocalho feito de semente de aguaí usado nas danças Parixara e Tukui do mesmo povo.
*Canto.
*Tabatinga.
---
abandonada
minha anatomia se encurta
deixei-a aos pedaços por toda cidade
enquanto crianças-copo tilintam fomes
tão antigas como suas etnias
para vidros aborrecidos de fumê
mas olhos-semáforos disfarçam: - abriu! desvia!
homens-papelão classificados de rua
anunciam desempregos mas bocas-gramática
apontam: -olha o erro! tá escrito em outra língua!
mulheres-número mais corpos & mais culpa
se empurram desiludidas para carros camas e rua
mas cabeça-sentença grita: - deve se vender por
gosto! desde lá deve ser puta
índias-descalçadas ardidas & desbotadas de meiosdias
vendem enfeites de palha mas bolsos-tempo
marcam:- agora não! que coisa cara!
abandonada
minha anatomia se encurta
deixei-a aos pedaços por toda cidade
fujo de nações inventadas & pergunto:
em que parte de mim se localiza a fronteira?
que cores tem a bandeira de minha face?
estrangeira de mim
peço hospedagem.
*aos hermanos venezuelanos.
cantigas infanticidas
no dia em que morri
era 25 de maio às cinco horas da madrugada
contaminada pelo amor que tu me tinhas
que era pouco & me matou
no dia em que morri
toda olhos vísceras útero & ovários
velava meu próprio corpo
à sombra de uma sacada
o sonho saiu ferido & a moça despedaçada
no dia em que morri...
mas não fui nada
não sei nada
não há de ser nada
enterrada em corpo vivo.
Vinda
Em tempo,
Se a tempo Ela vier,
Me alcançará em foices
De domingo e óculos de grau.
Não farei choramingos,
Nem últimos pedidos.
Dar-lhe-ei meus melhores dentes
E as despes do destino,
Então a contento a direi:
- Já vem Lá, parente?
E prosearemos pelo resto
Do tempo como duas penitentes.
---
arrastando minha grinalda de ferro
fundida de vivos & mortos
que nunca enterro
forjada na mais incandescente memória
cravada impiedosa na testa tal
qual viessem do mesmo material
escavo funduras na terra na face na cintura
me firo contra minha própria cabeça
contra meu próprio peito
com a lâmina que rebrilha da lembrança
no coração mais espesso
de levar todos golpes
& rexisto.
Vanessa Brandão
Roraima - N
Vanessa Brandão é jornalista roraimense, doutoranda em Estudos Literários pela Unesp, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Pesquisa sobre arte e literatura indígena. Escreve desde a adolescência e mantém o blog literário www.minhajanela.com.br Atualmente mora na Polônia, na cidade de Lódz e vive com saudades do Brasil.
Poemas
Deixo sim!
Deixa-me bagunçar tua paz organizada
Deixa-me! Caos em suas mãos de pintor
Deixa-me desmanchar tua ordem e tua moral
De bons costumes o inferno está cheio
E o mal não prevalece na casa dos bons
Encontro
Que tua alma encoste sem querer na minha
Passeando completas e cheias de ânimo
Sob luares sem precedentes
Muito perto
Dê-me de presente a sua presença
Sentindo com todos os cinco sentidos e meio ou seis
Ouvindo meu murmúrio de mulher doida
Vendo meus cílios cerrados
Podemos acender um incenso para garantir que estamos sentindo o mesmo cheiro
Mantenha suas mãos fixas em toda extensão da minha pele
Lamba meus dedos devagar
E me deixa sentir a energia emanada de todo esse enrosco

Renovação
Não tenha medo
Ossos humanos
São feitos de pó de estrela
Para Krenak e Esbell
Soube de uma América Latina inventada, um produto colonial
Imersos até os olhos na colonialidade das instituições
Soube dos povos indígenas da américa latina, vivos
Pujantes, resistindo há 500 anos de violências perversas
Soube da terra com febre, do mundo sem governança
E da necessidade ativa de agir localmente, pensando globalmente
Soube da cena trépida da canoa
Todos nós dentro dela, afundando
Soube, porém, não queria aceitar o lamento
Construiu uma rede de afetos, saiu exaltando mulheres
Abriu frestas de onde brotou luz em demasia, perdendo o controle
Fez-se clarão na noite e os olhos marejaram
Com soluços baixinhos, contagiados de um amor delicado, nunca antes sentido.