Adélia Danielli
Rio Grande do Norte - NE
Potiguar nascida em Currais Novos, poeta, feminista, mãe e produtora cultural. Participa dos zines Entre Seios e Revoada e do livro coletivo Por Cada Uma (Editora Una, 2011). Em 2016 lançou o primeiro livro solo, Bruta (Editora Tribo, 2016). Seu livro mais recente é vertigo que foi contemplado pelo edital da Fundação José Augusto, através lei Aldir Blanc.
latitude: -6,2616325 / longitude: -36,5181438

Poemas
vertigo
a matéria
da minha
cura
está nas
palavras
que não
falo
mas que
escrevo
calada
crio um
espaço
um eixo
centralizo
me protejo
nauseada
de girar.
---
me camuflo
na delicadeza
que confundida
com fraqueza
esconde
as portas
que já derrubei
as pontes
que consertei
as matas fechadas
que abri
os relógios que parei
os silêncios que ouvi.
---
segurar
a onda
crescer
depois dela
e se tornar
rainha
do seu próprio
mar.
---
nos perdemos
de nós na vida
no tempo
aumentamos
a distância
sobrevivemos
à lembrança
enquanto a memória
é impotente
diante do
que se sente.
---
não sou a mulher
que você quer
que eu seja
não perdi
meu cérebro
minha libido
meu desejo
de dançar
nem de fazer
revolução
não ceguei
para a política
não calei
minha poesia
não morri
quando pari
nem meus
sonhos
morreram
por sua
opinião
meus limites
não fazem parte
da sua designação
não sou a mulher
que você quer
que eu seja
não perdi
meu cérebro
minha libido
meu desejo
de dançar
nem de fazer
revolução
não ceguei
para a política
não calei
minha poesia
não morri
quando pari
nem meus
sonhos
morreram
por sua
opinião
meus limites
não fazem parte
da sua designação
tenho alma
um corpo
uma mente
e não adianta
tentar sentenciar
o que vai muito além
da sua pouca
compreensão
minhas ideias
alcançam lugares
onde seus limites
jamais chegarão.
Ana Luiza Souza Dantas
Rio Grande do Norte - NE
Ana é poeta, potiguar e pessoa - necessariamente nessa ordem. Nasceu, cresceu e vive na Zona Norte de Natal. Atualmente, é estudante de Comunicação Social e trabalha com escrita criativa e redação. É autora do e-book Dormia de bruços para segurar o coração. Em breve lançará seu primeiro livro físico Puemas de punho e pólvora.
latitude: -5,9757759 / longitude: -35,7609405

Poemas
minha cidade foi construída sobre dunas
em suas partes mais altas ou mais baixas:
uma duna ainda é uma duna
nascida e criada tão perto do sol
meu corpo é quente
meu sangue corre rápido
como quem foge
por isso eu sinto menos frio
abaixo da linha do equador
entre o previsível e o inevitável
é de onde vem tudo que sou.
Relatos de um rio pequeno do norte
I
sinto uma necessidade
de contar histórias
talvez porque minha cara diga
muito pouco do que quero falar
ela não diz sobre
os seus dias de sertão escuro
sem luz sem água
mas com muita farinha e feijão
você me diz que nunca passou fome
mas já quis comer bolachas que não podia
o sítio agora é outro
com luz energia até uma piscina
há uma magia no cloro
misturado com o barulho dos grilos
e o sabor do caju tirado do pé
os espaços se transformam
e isso aconteceu diante
dos meus olhos, viagens e pastéis de tangará
vejo tudo como
um destino feito
pelas nossas mãos
como belchior diz
naquela música que eu
e você ouvíamos quando faltou energia
aqui em casa e você me disse
parece que estou no sertão
sei que a cidade te doeu lá no início
II
quando viajo pra maior metrópole
da América do Sul não deixo
[nunca, nunquinha]
de pensar o quanto
agarrei minhas chances
improváveis pra honrar
o impossível que você
conquistou com seu suor
em cada voo tem um muito de você
eu juro
compartilhamos dores parecidas
em especial uma
[aquela que mói a alma]
e teorias dizem que tem algo
a ver com genética por isso o
mundo me doeu tanto desde cedo
penso que se for verdade digo
obrigada toda vez que você
saia pra jogar bola
ou dava uma risada sincera eu
tive dentro da minha casa
um exemplo de como vencer essa merda
queria te explicar
como nasci pra ser quem sou
e como quem sou também é
boa parte de quem você é
se aceito a aventura de me ser
é porque tá no meu sangue
no nosso sangue sertanejo
isso de não aceitar
uma realidade que dói
como se ela fosse
a única possível.
Obra para conter o avanço do mar
esse poema poderia ter outro nome
se o dinheiro conhecesse a palavra recuar
nós vamos pelo oeste
falando oeste como quem tem sotaque baiano
sem nem pensar em chiar como quem nasceu potiguar
sabendo que meia dúzia de tijolos não dá conta de um mar nordestino
por último, e não menos importante,
a gente arrudeia
e acaba no leste
falando s como quem espera fevereiros em recife.
---
Ir na mercearia 24h de mãos dadas
ir como se um fascista não estivesse à frente do país
e de mãos dadas como se muitos outros não estivessem à frente do mundo
Ir na mercearia 24h de mãos dadas
como se bichos invisíveis não estivessem matando pessoas palpáveis
ou como se não matássemos bichos para alimentar pessoas indigestas ao meu organismo
Ir na mercearia 24h de mãos dadas
como se as coisas fossem mais parecidas como sonhamos sem tempo pra dormir
ou apesar das coisas estarem totalmente ao contrário do que as nossas versões de 10 anos imaginaram
Ir na mercearia 24h de mãos dadas
ir porque precisamos comprar molho creme de leite e cebola
e de mãos dadas porque tocar 1cm do seu corpo é como estar sempre com um pé em casa
Ir na mercearia 24h de mãos dadas
porque é nas pequenas coisas que acontecem apesar das grandes coisas horrorosas
que percebemos que ainda há jeito que estamos vencendo ainda que perdendo um ou dois ou vários
Ir na mercearia 24h de mãos dadas
porque tenho sua mão na minha às 12h de um domingo levando molho creme de leite e cebola
mesmo que tantos documentos e tratados internacionais tenham tentado proibir esse acontecimento.
Algumas felicidades me assustam.
Como um céu rosa de fim de tarde. Sua existência já é a própria anunciação da despedida. Imagino o caminho até lá. Do outro lado do fim. A vista me parece ótima. Confortável, limpa e selvagem. Os pássaros voam pelos fios de alta tensão, como eu escrevi naquele poema. Parece fácil existir. Fácil demais pra ser verdade, eu penso. Por que ainda é tão difícil não carregar pesos? Todos os dias têm um pouco de fim de domingo. Exceto o fim de domingo, que já parece o fim do mundo. Hoje é um domingo. E em dias como esse, de acordo com o meu Google Agenda, a poesia já não é luxo. É necessidade. Lembro quando o mar me atacava quando era criança. Lá na Praia da Redinha, enquanto levava caldo, pensava: é o jeito dele. Achava que as ondas eram um charme do mar pra disfarçar nossa paixão. Agora mesmo me pergunto onde está essa aceitação das coisas como elas são; das ondas do mar exatamente como ela se formam. Preciso de um pouco dessa certeza que tudo bem o mundo acabar um pouquinho todos os dias. Eu já aprendi aquele truque de boiar numa tsunami.
Anna Zêpa
Rio Grande do Norte - NE
Anna Zêpa é natalense e vive em São Paulo desde 2009. É artista e realizadora nas expressões de literatura, cinema e teatro. É integrante do Coletivo Estopô Balaio, as de fora e Arenga Filmes. Tem 4 livros publicados, sendo 3 de poesia: Primeiro Corte (selo do burro, 2013), aconvivênciadosnossosrastros (selo do burro, 2015), Instantes Manhãs (comma, 2019); e 1 de contos: Da perda à pedra a queda é livre (2016). A partir da poesia tem parcerias musicais com Kiko Dinucci, Alessandra Leão, Meno Del Picchia, Zé Nigro e Jonathan Silva.
latitude: -6,0887145 / longitude: -35,099805

Poemas
o pescoço é o poço do corpo
na esquina, as nuvens andam com pressa
eu comprimida, a lua estática
estico os olhos e molho
o céu tecido de brincos
as horas casam e não cansam
de cair em coisa nenhuma
o sol nada nas veias velhas
de meu corpo covarde
me sinto rodriguiana
vamos, é hora de morrer
---
na terra de um beijo só
estou só
com dó
dos que respiram
puro pó
na terra de um beijo só
onde todo mundo
toma café
me sinto tão só
e vivo a dar rolé
nessa terra
de um beijo
só
cuidado ao beijá-la
seus lábios grudam
delícia de mangaba
---
meu ouvido
fincado
em teu peito
a batida
do teu amor
me tira o sono
sonho
---
sol deitado na pele
língua guardada na boca
apocalipse do amor
Gabrielle Dal Molin
Rio Grande do Norte - NE
Sou mulher cis bissexual, mãe da Gal, professora de História, Mestre em Antropologia Social, doula, poeta e vocalista da banda Valvulosa. Nasci Campinas-SP, mas moro numa praia do Rio Grande do Norte há sete anos. Vivo e escrevo sobre não monogamia. Lancei o livro de poesia Seiva em 2017. Realizei oficinas de poesia erótica para mulheres em 2018 e 2020 e organizei o zine Lambidelas, apenas com poemas escritos por mulheres lésbicas e bissexuais.
latitude: -6,4211409 / longitude: -35,0501914

Poemas
Quarto fechado
o sol entra pela fresta
ilumina as intempéries
da minha cabeça
e transforma
tudo em silêncio temporão
Ruas da memória
silencio os estilhaços
das pequenas tragédias
semeando delícias
todos os dias
os homens criam apocalipses
enquanto procuro os parques da minha infância
Todo verde
encontro uma vista de mar
a vida
me deixa mínima:
um cajueiro
contorcido e sereno
com os olhos de deus
Cactus
Meu corpo estreito entre as asas
Tem a fome do ar pelas dunas
E das águas, o fastio das rochas
BR
os vendedores de água e de qualquer comida que se mastiga
pra não morrer de fome
antes de chegar em casa
apostam corrida na BR
e um gatinho branco malhado
de marrom e preto se esgueira
pela cerca do supermercado
procura qualquer comida
que se mastiga pra não morrer de fome antes de viver mais
ou de morrer atropelado
na próxima esquina em que terão outros vendedores de outras coisas
que se mastigam mas não deveriam
estar ali nem vendedores
nem famintos
nem gatos
Gessyka Santos
Rio Grande do Norte - NE
Gessyka Santos, 30 anos, poeta e produtora cultural na cidade de Natal/RN. Autora dos zine Ponto e Vírgula, Peito Aberto por M² e Cópula em parceria com o também poeta Gonzaga Neto. Em 2019 publicou o seu primeiro livro, Autópsia. Conduz o Podcast Um Poeta em Cada Esquina e a Azóis Produtora Potiguar.
latitude: -5,8802973 / longitude: -35,1762109

Poemas
um fio solto
d e s c o s t u r a
todo corpo
---
masco pólvora
como minha avó mascava fumo
o mesmo carvão de suas mãos finas
preso em meus dentes
o enxofre entre rachadura de seus pés
grudado sobre a aspereza da minha língua
juntas
aprendemos a apagar
chamas com saliva
---
uma baleia encalhada na praia fisga meus olhos aos seus
quatro agonias entrelaçadas apesar da distância de três montes de areia
suas barbatanas buscam água pra voltar ao lar
enquanto meus braços cavam uma cova rasa feito eu
feito ela
é possível ouvir sua canção exasperada
e apesar de todo esforço de seu dorso
de todo alvoroço nos grãos sob ela
seus olhos estão caídos aos meus
e eu
caída no meio palmo
cavado
com unhas e dedos quebrados.
---
quando meus lábios beijam
outros lábios femininos
o bico do peito quer ser
brinquedo na língua macia
quando minhas pernas
encontram outras pernas femininas
[as tuas]
queremos ser beira de rio
regadas pelas águas salobras
quando me rendo a outros braços femininos
sou partícula infinda
livre na planície do teu corpo
e do meu
---
desabitar um corpo
é desacostumar o tato
a percorrer um caminho conhecido
é retirar de seus poros
o cheiro
impregnado do sexo do outro
do sexo da gente
é carregar o peso
morto
de um corpo inabitável
ter reações controversas
ao querer
sorrir desconcertado
quando sua boca quer
um beijo
transpirar de ansiedade
quando deveria ser
desejo
é jogar fora o mapa do
corpo do outro
e fingir que não decorou
cada relevo.
---
na palma da minha mão
não cabe o universo inteiro
mas cabe o céu dos teus cabelos
cabe o infinito da tua mente
enquanto me contas
seus medos e frustrações
não, não é amor que tenho por ti
é infinitude
é vontade de cuidar
tanto
que chego a ter medo
de sufocar
de matar
de tanto cuidado
e toda vez que seus olhos
se perdem nessa
explosão estelar que é a vida
eu só quero te mostrar
que tudo não passa
de uma poeira fina
e que se você fechar os olhos
logo, logo vai passar
vê, na palma das minhas mãos
não cabem o universo
mas cabem as gotas tímidas
que por vezes caem dos teus olhos
e todo esse mistério
que são suas palavras
sempre escondidas
por trás de cortinas
as vezes acho que você
é o próprio
universo incabível
e que nem toda astronomia
decifraria teus mistérios
mas ainda assim
ouso dizer que
o céu dos teus cabelos
cabe nas minhas mãos
quem sabe assim
esteja eu me tornando
universo também
Letícia Torres
Rio Grande do Norte - NE
Fêmea. Posta pelas fêmeas. Nordestina, vinda de Caicó em 9 de julho de 1977. Poeta. Formada em Comunicação Social. Idealizadora do projeto @pairar__. Participou das coletâneas Por Cada Uma (Editora Una/Marize Castro) e Cartas para Zila Mamede (EDUFRN). Em 2021 lança CRAVO, seu primeiro livro solo.
latitude: -5,832766 / longitude: -35,216767

Poemas
Começa a chover em cada cor dos sonhos que não consegui ter
As tintas escorrem lavando meus cabelos curtos como se fossem roupas
Sinto uma pressa que só se acalma na advertência
Nada pode ser afirmado sem que uma questão surja como toda solução
Os dias não pedem licença
O tempo vai passando com a impressão de que se indispõe aos pensamentos
A consequência mora no antes?
Percebida em seu erro, se mostra no depois de nossas vidas?
Quero a confusão de tudo o que, de tão perto, finalmente faz silêncio
Conhecer o vazio é criá-lo desabitado?
O barulho dos passos se solta dos pés
Para em nós carregarmos o relento do mundo
---
A vida ali
Na casa do amigo que foi morar longe
Na festa desmarcada
Na dor dormente e congelada
Na beleza cuidadosamente desfigurada
A vida aqui
Na brincadeira da criança mais calada
Na textura da parede aos poucos afundada
Na fala das histórias desacreditadas
A vida assim
Pela nudez, quase disfarçada
Pelos acertos, negligenciada
Pelas escolhas, sempre duvidada
A vida em mim
---
Parei o olhar até a imagem ficar desfocada
A hora presa entre os dentes
O corte de cabelo desfeito pelo tempo
E todas as canetas à espera do próximo pensamento
Meu passado vindo e indo pela memória dos desconhecidos
A ressaca dos quatro dedos que ficaram na garrafa
O esboço borrado pela certeza da mão
A mulher deixada na estremecida porta dos minutos em vão
Solidão
O dia entrando pela noite
A tinta da foto alimentando o vento
Meu medo de não ser gostada já desgostando por adiantamento
A gaveta aberta esbarrando nos olhos tortos dos questionamentos
---
As mesmas pessoas passam por mim
Com suas fisionomias mudando os dias
Contando o tempo
Uma música ruim toca a angústia
Que entra pela falha da minha janela
Na noite em que grito até ninguém me ouvir
À cabeceira das mortas convicções
Vem a voz do passado sussurrar as palavras
Com as quais invento essa história
Pressentindo é o mais perto que chego da felicidade
Quando tristeza
Encolho cuidadosamente nos gestos do abandono
---
Acordo com olhos apertados
Para não ver tanto mundo entrar
Cuido do lugar que não está ferido
E demoro os dedos, circulando o equívoco
Falo das falhas
Vou continuar escrevendo mesmo quando a tinta secar
Deixar de ser criança talvez seja aceitar o fim das coisas
Terminar, concluir, rematar
Vê-las acabar
Da solidão faço risco no papel amassado
Chamo de poesia o que vem dando errado
Não acreditar na vida é a maior entrega que posso experimentar
---
A palavra “desespero” fala dos que cansaram?
Ou dos que, inconformados com a falta que sentimos,
Não conseguem desistir?
Talvez esse começo seja resposta para uma resposta que demora
O que assumimos no instante em que a vida nos alcança?
Fundamentada em equivocados avisos
A proteção se mostra frágil se nos chamam pelo nome
Para o disfarce usamos como biombo as ideias dos outros
Absorvemos na ânsia do vazio que nunca para de doer
Transformados em repetição somos desmascarados pelos sentidos
Assim nenhum instinto é aceito como revelação
Maíra Dal'maz
Rio Grande do Norte - NE
Maíra Dal’Maz nasceu em 1991, em Monte Dourado (PA), mas vive no Rio Grande do Norte desde 1993, de onde lê, escreve e ensina. Seus poemas compõem algumas publicações coletivas e independentes, como antologias e zines. Desde 2016, colabora com a mediação do grupo de leitura Leia Mulheres Natal.
latitude: -5,7816834 / longitude: -35,1931699

Poemas
trabalhador do mar
para thiago medeiros
um perfil talhado em vincos de acne
tua foto no substantivo plural
pronto para uma guerra que não vi
na tevê, o antigo franciscano brinca,
congregando o que há para comer e beber
armado em terracota com um cacho que se perde
em preocupações seculares:
a poesia - palavra etérea para tua boca cerrada
enfeitando teu colo o patuá de sementes
de árvores frutíferas e sombras
que nascem do teu quintal
é preciso trabalhar, diz, fazer circular mercadoria:
a poesia - tua peixeira - afiada no couro
com a qual tira as escamas e faz teus colares,
devolve às entranhas o orgulho
e permite o corpo inteiro - este teu - nadar no mar
lagoa de extremoz
há, portanto, em cada canto deste mundo
a invenção
nas porções de águas escuras e doces
tanto mais
aqui, por entre as ruínas da margem
dormem os olhos rutilantes
da píton-pagã
pobres incautos que buscam
suas bases no cálcio
porque nós, que aqui estamos,
por vós nunca esperamos
ansiamos, sim, pelas jangadas,
numa vigília ao som do sermão de costas,
que, juntas, torçam os ossos as cobras
tracem as rotas desse comboio,
rumo ao grande hotel fechado,
e sonharemos a liberdade
"há de marcar em fogo o mais vivo da pedra"
(hilda hilst)
a origem do mundo
passa pela iniciação de uma pedra
atrito e granito escritos
no breu das cavernas
mata-borrão para quê?
a sobra é o que cria
e este espírito atravessa o excesso
encarnado de luz e calor,
retalhando, feito cortes de papel,
a língua das madalenas
por qual fenda escorre, então, a palavra?
decisão de minerva
eu: pedra e língua
marcada pelo fogo
da descoberta
baba yaga
para isabela h. coelho
entrar,
sentir as pedras ocres e o calor liso
das paredes que nos guardam
ficar,
não entre mis abuelitas que, pelo sangue,
jamais me permitiram palavra
ficar,
com o decoro de que devo conhecer
a irritadiça e sublime mestra
ir,
este rastilho cheio de sulcos e desamparos
de indomável raiva e sossego
bliss
filha de estradas, onde se emaranham juremas e cactos
deixo h. para ver freadas, enquanto ele,
calmo,
compõe poemas pós modernos para tentar decorar o número de celular
ou acerta despertadores para um pouco mais tarde
e emaranha-me,
entre colchas, apelos e músicas
presos aos limites da derme não alcançamos o bliss assim tão fácil
sobram tentativas de rompê-la, quando já ultrapassadas no que escuto longe em silêncio com sinatra
because I've got you under my skin
and I like you under my skin
e depois,
como acordar para a ordem moderna?
Maluz Maheros
Rio Grande do Norte - NE
Maluz Maheros nasceu em Natal-RN em 1992.
latitude: -5,8256839 / longitude: -35,1981702

Poemas
PINEAL
aos deuses escamados confio as chaves de teu orquidário
se te peço pão é porque busco teu discurso
[e mãos postas sobre a mesa de ferragem
hectares de além lajotam teu lar sacrossanto
expurgam as vontades numa festa cambaleante
onde desfibriladores reavivam a astênia das pernas
Dionísio se regozija dos dentes etílicos e bocas lilases
digo-o que a rua onde enrola o 44
é um grande abraço com paredes verdes
onde as conchas das mãos são bacias armadas
para o que é vindouro
eu fico na companhia de teu cão de olhos prismais
e bebo não só alimentando os meus Dionísios viajantes
que se banham em cores insólitas e desvairantes
DE UMA OFICINA COM JACK SPICER
com as gengivas desaparecidas
a fome elabora a redenção alforriando as tripas
estamos a nadar em pele esvaziada
e embora o nariz seja uma ponte
nos espiralamos para o nada
o olho fisga e os tremores fazem de nós
ventríloquos assustados e dissonantes
e agora o metal escorre do radiador
vermifugando o chão
bêbados e ciganas deitam sob
a mesma linha em que se que se erguem
onde redemoinhos embalam a noite das crianças
ainda irei ouvi-los no estreito reduto do meu sono
TENTO CAROLINA
atravessar a vida dos olhos dos meninos
ficcionando os dias
do caos lamber a ferrugem
quebrar os dentes do riso
tento carolina patrocinando o suicídio das bocas
formigas desenham caminhos de suas civilizações ocultas
sobre a mortalha de meus pés
na vida dos olhos do menino
a vida dos olhos que tive
---
aneurismas encapam a noite enquanto
latifundiários de entranhas domam pensamentos perdidos
desde a remoção dos pelos a pele cicatrizou
com o teu canino perdido dentro
de braços passados no estômago benzo e invoco nomes
para que subam suas proteções sobre mim
[endereço-me a você como uma embarcação no lodo]
---
ancestralizada por palavras de outras mulheres
me tornei pesada e avulsa
mas forte
meu útero efervescente
burila as palavras para o poema
disperso meus passos nos paralelepípedos dessa cidade perdida
com as pernas lisas
diluo os pedaços de meus malfeitores
derramando suor-amálgama
com os calcanhares friccionando o solo
esburaco
preparo o asfalto para a chegada de novas sementes
em espelhos com capas e títulos
desmancho-me
emparedada
reconstruo-me
o farfalhar de páginas brancas enfileiradas
vestem meu novo corpo
a cada velha deusa hospedada em minhas pálpebras
retiro novos significados
refaço meu idioma
BRUJERIA
do alto de meus olhos eriçados contemplo a reinvenção
o veludo resplandecente que te veste
a carrega até a coroação dos limbos
para ascensão da padroeira do fogo
que esparge de teu ventre banhando a terra
sobre a expansão da tua mente sobressaltam fractais abóboras
do alto dos meus olhos empolgados percorro o altar
enquanto os fósseis ancorados incensam meu corpo
o desvario das nuvens trovoando meu peito-moinho
pregoam meus pés no caminho até o talhe de deus
Marize Castro
Rio Grande do Norte - NE
A poeta Marize Castro (Natal/RN, 1962) é autora dos livros de poemas Marrons Crepons Marfins (1984); Rito (1993); poço. festim. mosaico (1996); Esperado ouro (2005); Lábios-espelhos (2009); Habitar teu nome (2011), A Mesma Fome (2016) e Jorro (2020). Sobre Marize Castro, afirmou Haroldo de Campos: “Em seus versos há algo de fundamental, algo entre o belo e o verum, a verdade em beleza, um cuidado especial com a síntese, um encontro com a poesia”.
latitude: -5,8758908 / longitude: -35,1700622

Poemas
QUERELA
Minha farsa
é sábia
sóbria
com ela vivo
enfrentando as feras
misturo as tintas
para em seguida
abandonar a tela.
A loucura está a alguns
passos de mim
(não me confunde)
e me observa
com o olhar de prata
que só habita
os cúmplices.
(Marrons Crepons Marfins, 1984)
INTEIRA
Iluminada por oráculos
alimento anjos com asas quebradas.
Não é de vendaval que eu preciso
mas da língua do amor guardada à beira-mar.
Não entendo de círios
mas de verões e sargaços bailarinos.
Acolhida pela província,
arrisco-me a enlaçar orquídeas em árvores.
Sempre sofri.
Sempre tive febre.
Sempre estive inteira em todos os infernos.
Nunca quis ser abandonada.
Mas aprendi a perder.
O naufrágio me ensinou a ternura dos afogados.
(Esperado ouro, 2005)
DE VELUDO E SANGUE
Porque declino do seu amor, o véu das torres me invade.
Já engoli espermas. Já voei muito alto.
Aos santuários de meninos-lodos e meninas-ostras.
Neste hemisfério, o tempo é vermelho.
A fé: andrógina. A inocência: anônima.
O amante: cego e corcunda.
O meu leite rega a flor que o inimigo trouxe.
Aqui não há solidão
há bosques de lágrimas
unicórnios reunidos para falar de amor
aranhas flutuando num mar
de veludo e sangue.
(Esperado ouro, 2005)
SUSPENSA
Oráculos me suspendem.
Ouço o Amor chamando.
Em cada país um diferente unguento
para suportar a viagem.
O desejo é a curva.
O grande véu com o qual me cubro
– e prossigo.
Se você não voltar
os bailarinos ficarão órfãos.
Se você não voltar
a vertigem será silenciosa.
E não será o fim.
Será o início do grande segredo.
(Esperado ouro, 2005)
AMO
Eu disse
que não me moveria daqui
antes de ser curada
pelo seu olhar
seu andar
seu furor
seu esmorecer
seu partir
e ficar
Eu disse que lamberia seus testículos
e beijaria sua vulva
sumiria no mundo
me transportaria para um outro
para uma esfera menos hipócrita
menos tola
e ainda assim
sedenta
Eu disse
mas os tártaros chegaram
e nos arrastaram
para um país de lestrigões e ciclopes
ao encontro dessa sombra mínima
adormecida sobre leves
e pesados bíceps
(inútil veludo
a velar
nossas minúsculas
mortes)
Eu disse, eu digo: amo
Lá fora, incansável, a servidão
Adormece
(A mesma fome, 2016)
CÁSSIA. JANIS. NINA
Deliciosas mortas cantam nesta casa.
O delicado espelho revela
o que se apagou por hipocrisia
acidez
babaquice
indulgência
horror.
Deveríamos vir aqui mais vezes
neste lugar onde a gentileza
é uma montanha que desmorona
e se ergue a cada festa
devolvendo aos olhos do mundo
o pequeno-grande sol
– seu primeiro filho.
Somente aqui
(não mais em nenhum outro lugar)
deliciosas mortas reinventam
a vida.
(A mesma fome, 2016)
Michelle Ferret
Rio Grande do Norte - NE
É poeta, roteirista e jornalista. Formada em Jornalismo e Artes Cênicas com doutorado em Ciências Sociais. Em 2016 junto com o filho Pedro Ferret, lançou o livro Amor substantivo abstrato (editora Burritos), e, em 2020, lançou o livro Febre (editora Selo DoBurro). Ministra a oficina Poesia e Memória e viajou pelo Brasil em 2019 através do projeto Arte da Palavra do SESC.

Poemas
TRAGO
Trago a liberdade
Amarrada nas mãos
Como finos cigarros
De festas dos anos 70
Trago
A liberdade
Enlaçada nos cabelos
Cabeça de fósforo
À espera de combustão
Trago
A liberdade
Cortada no peito
Como uma faca abrindo a manhã
De ontem
Já cinza
Trago
A liberdade esquecida
Nos pés
Descalços
Em estrada de pedrinhas
Aquelas que doem a alma
Trago
E expiro
Num alvorecer de noite
Mal dormida
E respiro uma fumaça onde se lê:
Ninguém desce desse mundo.
SUSPENSÃO
Fragilidades incompatíveis
Asas
muitas
abertas
fechadas
asas
usadas quando se precisa ir
abismada
precipício de dias
cansados
fragilidades controladas
fortalezas incompatíveis
dia
noite
arredores de água corrente
voo
suspenso
asas
fechadas
pássaros bicando o asfalto
céu azulado
lua cheia
completa
distraída
fragilidades esquecidas
voos
adiados
asas
cortadas
em recuperação
novos devaneios
para dias já cansados
ausência de vento
sopro
ar rarefeito
asas abertas
dias
noites
fragilidades suportadas.
PIETÁ
Antecipo a saudade
Imaginando tua chegada
Na porta
Do lado de fora
Do prédio
E olho pela janela
Ninguém
Nem o carro do bolo
Nem o milho verde
Nem tu
Antecipo a saudade
Com o braço ainda morno
Quase uma escultura
De Michelangelo
Naquele lugar
Meio barroco, exagerado
Em que nem os trôpegos da madrugada
Enxergam mais
Amanhã é outro dia
E toda revolução
Tem um passado
Toda saudade finda
E todas as esculturas
Estão sujeitas ao desmoronamento
Até os braços abertos
Desfazem-se
De cansaço.
O QUE ESTAMOS FAZENDO AQUI?
Talvez o céu comece onde a gente termina
Naquele traço invisível
ignorado entre a saudade e a terra
Talvez o céu termine onde a gente começa
e as linhas se confundem
nos trilhos, nas cordas dos violões e nos tecidos finos
bordados por linhas grossas
Talvez a gente termine
ou seja céu
e as linhas das mãos lidas e revisadas
sejam o conforto absoluto da existência das ciganas
Talvez a gente seja
os olhos inquietos delas adivinhando a chuva
e o destino
vicejando o fim do mundo
Talvez a gente seja
o fim
que comece a cada tracejar do GPS deitado nas mãos
ou mesmo o chão
adornado de dedos e botas que não afunda nunca
mesmo a tanto peso
Talvez a gente seja o chão
À espera das sementinhas ou das nuvens
projetadas pelo sol
num contorno imenso de nossa miniatura
Talvez sejamos um braço desse desenho
saído das mãos gigantes de uma criança
ou um traço, uma traça, um troço desconfortando a ciência
e retornando velada na pergunta que ninguém nunca respondeu
o que estamos fazendo aqui?
RESTO DE VIDA
Entre as festas e fogueiras
Suspensas
O fim do dia
Tem nas mãos
Um cachecol de lã dourada
Entrelaça os nossos olhos
Aquece o coração
Mesmo que esfrie logo depois
Com a chegada ligeira de uma noite nublada
Esse tempo de anuviamento
É o mesmo utilizado pelo sangue
Ao percorrer
todas as veias vivas
Do corpo humano ou não
Depende do espaço que temos por dentro
Esse deslocado entre a omoplata e essa saudade sem geografia
Despedimos todos os dias
De tudo
É quando lembramos
Que nascemos de um parto
E ainda assim
Esquecemos todos os dias
Para ter um pouco de esperança.
SEMPRE É TARDE
Nesses dias úmidos
Guardo entre os dedos
A coragem de entardecer
Parece que sempre é tarde no inverno
Mas aqui não existe
Inverno
Nem outono
Nem estação alguma que faça adormecer
Os trens partidos
Toda ida é um arrancamento
Esforço
Linhas recortadas pelas tesouras cegas
Dos teus olhos
Nesses dias úmidos
Toda saudade é alucinação
Todo calor
Arado
Toda ventania
É um aceno de tua presença
Mesmo que por um instante
Entre meus cabelos
Molhados.
JUNHOS DE DENTRO
Antecipo a festa
Roendo o resto do milho
Esquecido no fogão
De ontem
Consigo sentir o frio
A fogueira
O doce da vida
Até tudo voltar
A um sofá, almofadas, tv
Desligada
E lembrar que não vai dar
Pra voar
Amanhã
Isso de ser porto e partida
Ainda nos levará a dançar
Numa terra fina e batida
Num lugar em que não chegamos
De barco
Até desafiarmos a lógica
Dos pêndulos
Da memória
Da saliva
Quando aqui
Nessa noite
Ainda é São João.
Olga Hawes
Rio Grande do Norte - NE
Olga Hawes (1998) é potiguar, poeta e estudante de psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem como publicações solo as fanzines vidraçaria (2014, ed. Tribo), dente canino (2017), e o livro de poemas um minuto de barulho (2020, ed. Patuá). Integra também alguns trabalhos coletivos, entre eles a antologia potiguar blackout (munganga edições, 2018).
latitude: -5,687081 / longitude: -35,209189

Poemas
Coisas para se fazer quando não se sabe mais o que fazer:
Usar um bigode falso para adentrar o coração de um gigante.
Se arrastar pela cidade de joelhos procurando um ex namorado.
Surfar uma onda alta demais ao lado de um tubarão.
Dormir de conchinha com o padrasto da sua melhor amiga.
Montar um cavalo com pescoço de fogo e assassinar um padre.
Descobrir uma dúzia de constelações escondidas dentro do cinturão de alguma-coisa.
Falar sobre objetos marinhos não identificados no triângulo das Bermudas.
Decorar célebres últimas palavras sem motivo aparente.
Escrever textos sem sentido.
Planejar uma viagem que não vai acontecer.
Ligar para todos os seus amigos às quatro da manhã e nenhum deles atender.
Beber a ponto de cortar os dedos dos pés para encaixar na sapatilha de gesso.
Fumar maconha de procedência duvidosa deixando de lado a moral e os bons costumes.
Ler um livro adolescente sobre suicídio com uma garrafa de tequila na mão.
Cuspir no prato que comeu e depois lambê-lo.
Almejar um futuro inalcançável.
Usar o vaso sanitário público sentada.
Descobrir métodos anticoncepcionais alternativos de eficácia mínima.
Se tornar sommelier de vodka barata.
Pesquisar sobre doenças venéreas.
Cavalgar até o último episódio de cavaleiros do zodíaco.
Não concluir este poema.
Ainda assim, sentir que ele disse tudo que deveria ter dito.
no livro “um minuto de barulho” (ed. patuá, 2020)
Contra-tempo (setembro 2018)
Dos dias que passaram
sentimos falta é do suor.
E nisso descobri o simples:
que é sempre preciso estar disponível para as mãos alheias
nessa luta cotidiana contra o desespero,
porque tudo que o inimigo mais odeia é o toque.
É assim ou as manhãs escurecem,
já que as palavras em nossas cabeças
já descansam exaustas faz tempo.
O único que nos sobrou foi a pálpebra e o
pouco direito que vem de mãos dadas
que é esse de fechar os olhos e com as duas mãos carregar
o peso desastroso dos escuros.
As memórias se tornaram histórias.
Cada palavra perdeu seu frio na barriga.
Pagamos o futuro como as parcelas de um consórcio.
O peso do medo sentimos no pulso:
O relógio.
no livro “um minuto de barulho” (ed. patuá, 2020)
acerca dos platonismos
I. o primeiro menino
Estou escrevendo
sobre o seu peito nu de
incontáveis pelos que
lambi um por um
Mas que diabos pensar em poemas artefatos
tragédias gramáticas o dicionário aurélio
quando você tão perto.
Pele áspera, suor de inverno:
Fazer de você tarefa passada
sinal do universo ignorado em letreiro
Desejo do corpo alheio bem
atrás da orelha essa pontada
que eu não sinto a anos
exceto quando releio
os poemas que escrevi de madrugada
sobre o seu peito nu de incontáveis pelos.
II. a primeira menina
tenho a lembrança de você
como os cavalos lembram das colinas
os cachorros das praias
os cantores da volta
do exílio
você sabe a anatomia dos cadeados,
incorpora o busto dos deuses,
caminha sob a terra tornando arranha-céus maleáveis.
há um traço tragicômico em tudo isso
(uma lembrança do país em que vivemos)
há ainda a anatomia climática
preservada pelos seus dedos
semiáridos sob meus pelos
eu te adoro e a lembrança de você
é migalha
para o quanto de desejo
eu ponho na mortalha
dos teus cabelos
eu te adoro e eu vou dizer isso de novo.
eu te adoro e o presidente é nada ou
muito pouco.
adorar você
sob silêncio
sob espada
sob sufoco.
gastura
já faz 44 horas que
eu não durmo, ele diz e
nenhum pingo de sono qual
música que você escuta pra
ver o sol nascer, aquela lá que dá
vontade de chorar,
sim eu sei também gosto
dessa.
aqui a gente não tem
muito o que fazer é sempre
a mesma coisa eu sou fã de
música de sopro carnaval
janis joplin mas não
de rotina.
é difícil porque passei os últimos dois anos
usando droga e esqueci que
era poeta como eu vou
escrever sobre tudo que perdi
nos últimos dois anos você
come esquisito - ele disse faz
dois anos - morde o garfo dá
gastura vou comer
na sala
descobri que poema pode ser
vingança
desde então eu
esqueci o nome dele
e sempre trituro o metal
de qualquer talher
usando os dentes.
Regina Azevedo
Rio Grande do Norte - NE
Regina Azevedo é poeta. Nasceu em Natal em 2000. Publicou os livros de poemas Das vezes que morri em você (2013, Jovens Escribas), Por isso eu amo em azul intenso (2015, Jovens Escribas), Pirueta (2017, selo doburro), Vermelho fogo (2021, OffSet Editora) e Carcaça (2021, Munganga Edições), além de alguns fanzines.
latitude: -5,7987235 / longitude: -35,2078691

Poemas
PITANGAS
olha
cansei de chorar
as pitangas
da tua ausência
o cão que abanava o rabo
virou gata no cio
que saudade tenho
do teu corpo
sobre o meu
coladosuado
cruzaria o continente
só pra ter o gostinho
de sentar de novo na tua cara
MARIA
meu nome é maria
terra vermelha
banho, prece
vela sempre acesa
o coração pesa
na hora de voltar
pra casa
mas ela me disse
pra pisar firme
ela sabe
que tudo passa
no balanço da maraca
e eu sou mesmo
muitas mulheres,
um país
cavernas curadas
com água e palavra
na veia
é mãe luiza, ceará mirim,
riacho da palha e potengi
sei o caminho
porque elas mostram a mim
RESISTE
gostava de se olhar
como se carregasse uma bomba
debaixo do braço gostava de se olhar
e imaginar a palavra sovaco sendo lida
na academia gostava de se olhar
como se seus olhos revelassem
o paradeiro de deus gostava
de se olhar como se pudesse falar
e ser ouvida além de ser olhada
gostava de se olhar e pensar
em uma coisa dentro de outra coisa
uma música dentro de um vidro ou
ele dentro dela vidrado
gostava de se olhar
como se fosse a linha de frente
gostava de se olhar
e imaginar que a palavra
era um superpoder gostava de se olhar
como se seu cabelo fosse
uma lamparina gostava de se olhar
e imaginar a terra
tomada de volta de assalto
gostava de se olhar
e se imaginar rocha,
pele, pólvora
piolho é um bicho que existe
mesmo que ninguém se importe
mesmo que ninguém acredite
gostava de se olhar e se imaginar
vulcão
melhor: mulher
bicho que aprende a andar
e a derrubar
COM LICENÇA, VANDAL
eu te amo e eu não vou falar
de novo eu te amo
e amo desde o caos, os pulos
desde os teus poros, teus polos
teus beijos-polga
as explosões
as coisas químicas
os mil minerais
que tu acha no meu rosto
a reencarnação de basquiat
e as dúvidas sobre deus
o calção preto, as camisas sujas
os pelos
as descobertas
as cobertas
do escuro
as coisas escondidas
em plena luz do dia
teus medos,
tua coragem de ser
teus jeitos de dizer
de novo
o teu barulho
teus gritos no pé douvido
as pinturas e as músicas
ainda na cabeça
os cochichos, os sustos
tua mão molhada
e o meu peito pronto
tua cabeça e o meu ombro
teu cabelo e meu cabelo
crescendo juntos
teu jeito de chegar
como quem finalmente chega
teu jeito de ir
como quem precisa voltar
eu te amo e eu não vou falar
de novo
---
minha mãe veio do interior
da minha vó
vovó veio do interior
do interior de Caicó
eu vim do interior
do interior
da minha vó
Stéphanie Moreira
Rio Grande do Norte - NE
Mulher preta e mãe, macumbeira, militante do movimento negro, capoeirista angoleira. Brotei do chão no agreste potiguar. Poeta, tenho insistido em não perder novamente minha voz. Escura demais, arredia, digo verdades desafinadas, minha música não sei por onde anda, mesmo assim eu danço. Performer, meu corpo fala nas ruas, no mato, nas encruzilhadas, sobre as proibições que pesam sobre os corpos de mulheres negras. Também antropóloga, trabalho sobre a criação de memórias por populações subalternizadas no Brasil.
latitude: -5,870161 / longitude: -35,215108

Poemas
Carta de alforria
eu tenho direito a chorar alto
em público
sem ser julgada por isso
sem ser olhada como um ser estranho
eu tenho direito a me emocionar
ao falar sobre o extermínio do meu povo
eu tenho direito a ser acolhida
por outra mulher
que entendeu
que chorar assim
é mais constrangedor para mim
do que para todos vocês
polidos
políticos
educados
ou rudes
eu tenho direito a me deitar no chão da senzala
depois de sair de um arquivo
que aprisiona minhas avós e meus avôs
em inventários
junto a cavalos, éguas e bois
e também a me levantar dali
quando estiver pronta para liberar minha dor
que chegou tardia
mesmo tendo sempre estado sentada em minha calçada
eu tenho direito a mandar rezar a missa
de sétimo dia
de 1 mês
de 1 ano
de 1500 até hoje
e sepultar o apartheid qe partiu meu pai
eu tenho direito a me alforriar
e posso chorar alto e em público
sem ser julgada por isso
Meu tronco grosso, meu tronco velho
Eu moro no meio da caatinga onde as vistas avistam de longe uma sombra encorpada
Sou uma árvore boleada com um buraco no meio
espalhada
panóptica de três cabeças feito um dragão
[ou feito um Tejo esquisito]
que viram seis pela quentura que sobe e anuvia o próprio mistério encravado no chão
debaixo das minhas saias
não crescem daninhas
minhas raízes são tão fortes que nem a terra as comporta
se retorcem como quem não cabe no subterrâneo passado dos meus
e dali bebem e comem e suportam
giram sobre si dançando na velocidade dos tempos
e quem no mundo quer pressa pensa até que elas estagnaram
o peso rombudo de meu corpo
requebra lascivo com as carícias do vento
dos bichos que me habitam e dos pássaros com quem vôo
comedora de terra e sol tenho mil bocas
uma na ponta de cada folha verde-crespa
que cantam e gritam e enlouquecem e invocam a água doce
e botam pra dormir
quem não olha bem só vê mesmo a loucura
não passo fome
eu pari o alimento e levo duas cobras dentro do meu peito
no buraco de meu meio
com quem danço quando aquelas pretas falam com os tambores
empresto sombra para o tempo ter paciência de passar
enquanto meu filho se deita no meu galho mais grosso
e repousa o tempo de sua brincadeira sagrada
fique viva
sim, a dor pegou na minha mão e me alfabetizou
a mulher pariu o homem
que partiu a mulher e pariu o silêncio
jogou no chão o melhor prato dela cheio de desejos
em um silêncio catedrático e profundo e tão cotidiano
que até parecia que não falava por gosto
no peito o desgosto abria a ferida que a matou
e enquanto ela morria me dizia
fique viva mulher
fique viva
essa dor pequena que te enforca
e fura teu ventre até fazê-lo vazar sem estar cheio
realmente te matará se não sair de dentro de você
levantou a camisa e mostrou o peito nu e irremediavelmente inflamado
e me disse
para tirar essa dor do meu peito
e viver
Viver ainda é perigoso
1 Mapa ao tesouro [para meu filho não perder sua criança]
Por detrás da casa que nasceu sua avó
Debaixo do cajazeiro de seu avô
Por baixo do seu galho preferido
Vai encontrar um pé de umbigo
Que brotou de você
2 Reverência
Exu joga a pedra ontem
Para acertar amanhã
Hoje estou sentada numa encruzilhada
Olhando para cima
Vendo a pedra passar
3 Útero
Depois que me perdi
Fui andar nas matas de minha mãe
Achei xananas jogadas feito bolas de ouro pelo chão
A casa onde ela nasceu ainda estava de pé
Porque então eu haveria de cair?
4 Abraço
Nos tempos de hoje
Sou lagarta de fogo
Ardo exuberante
Em retorcidos galhos
Mas é proibido abraçar
5 Sobreviventes
os frutos do norte estão nas árvores
pendurados pelo pescoço
colhemos rezas fogo e pedras
os frutos do sul
racham o chão que escorre vermelho
não dormimos com esse sangue coagulado em nós
A BOCA A PALAVRA E A LÍNGUA
estou livre pela minha boca
pela minha boa boca
e pela língua
morro pela palavra
e sua dor póstuma
pela vergonha de ser ouvida
e vista
como se tivesse pendurado minha pele num cabide ao lado
para poder dizer o que sinto
e depois não soubesse como vesti-la outra vez
ainda assim
sagrando vergonha e insegurança
a boca a palavra e a língua me libertam