Ana Mauê
Piauí - NE
Ana Mauê é viajante, poeta e sonhadora. Autora dos livros artesanais Peregrinando (2018) e Antes do Sol de Por (2020) . Organizadora do projeto Sarau das Minas Phb. Tem suas poesias voltadas à luta, existência e experiências.

Poemas
Quisera eu
Quisera eu ser uma poesia
Que nasce eufórica nas mãos de um poeta de rua
Rasgando o guardanapo
Meros pedaços de uma noite anterior
Enfiados nos bolsos surrados
Encontrada três dias depois
Quisera eu ser um cajueiro
Plantado pelo mais bravo dos Tremembés
Na praia da Pedra do Sal
Talvez teria uma história bonita pra te contar
Enquanto o vento no meu rosto
Contasse segredos do mar
Quisera eu ser uma guariba
Nas matas de Presidente Figueiredo
Gritar as três da manhã
Viver em baixo de um arvoredo
Com meus pelos vermelhos
Correr dos humanos
Sem ambição, sem planos
Sem roupa, sem medo
Quisera eu ser uma varinha de um maestro
Com cara de louco
Guiar as flautas, as trombetas
Estremecer pouco a pouco
Quisera eu ser um canto rouco!
No disco de Angêla Rô-Ro
Talvez uma pena de gavião
No meio do cocar de um Apache
Na América do Norte
Talvez um patuá!
Com pena de sabiá
Para dar sorte
Quisera eu ser tempestade!
Dessas que invadem
Dessas que se formam no horizonte
Dessas que as pessoas se escondem
Só não quisera ser metade
Meio poeta, meio crente
Meio covarde..
Não!
Eu não morri três vezes
Pra renascer e ser metade!
Meu caro, me desculpe a sinceridade
Posso ser Tudo e não ser Nada
Mas, pelo amor da Deusa,
Só não quisera ser metade!
Dona Socorro
Quando vi no canto da esquina escrito
“respeito”
O banho de arruda desfez o nó que eu levava no peito
Aqueles olhos tão cansados estavam molhados
Eram enxugados pelas mãos amassadas
Cansadas da rede
Se esforçava para caminhar segurando na parede
As plantas no jardim morrendo de sede
Mil passos não se mede a dor que se sente
Nesse mundo incerto
Uma simples prece
Se torna um presente.
Além dos Mares
Lá vem os homens!
Atravessando os mares
Nos impondo uma cultura de consumo
E individualismo
Nos obrigando a falidos mecanismos
Antes mesmo de nascermos
E assim, quando crescemos
Seremos peças de uma engrenagem
Uma enorme máquina que a poucos servem
Sentados em um trono
Que a populaçao carrega nos ombros
Com sangue e suor
E nos ditam como ser
Pensar
E até nos vestir
Como posso eu me sentir?
Vendo a Amazônia a venda
E toda essa renda
Pros políticos ursufruir
E a senhora na fila do SUS sem conseguir sorrir
Karoline de Carvalho
Piauí - NE
Da necessidade de bordar a vida com a escrita, nasce a artesã das palavras. Desde então, poemas, contos e crônicas formam o seu artesanato literário. Na tecitura dos dias é educadora social como uma convocação da vida.
latitude: -2,9047304 / longitude: -41,7771548

Poemas
Poesia
Na dor que molda o ser
Trazendo maturidade para viver
No defeito que persiste
Mostrando que a imperfeição existe
Em cada detalhe a poesia da evolução humana
Naquele lugar em que o amor nasceu
No momento em que o inesperado aconteceu
Na música que despertou a lembrança
No filme que faz ressurgir a esperança
É a poesia da arte em toda parte
No sofrimento que custou passar
Na ferida que demorou para cicatrizar
No luto que doeu
Na crença que morreu
Poesia do coração que sofre
Na amizade que o tempo não apagou
Na família que o conflito não separou
No casal que mesmo na crise continuou
No fiel que mesmo sofrendo ficou
Laços da vida que pulsam poesia
No silêncio que trouxe entendimento
No diálogo que proporcionou livramento
Na palavra que ajudou
Na pessoa que amou
A cada traço da vida há poesia
Coração de adulto
Aperta, Machuca, Fere
Pobre coração de adulto
Desencanta, Perde o brilho, Endurece
Triste coração de adulto
Abre-se para o novo, Perdoa e Ama
Nobre coração de adulto
Sente saudade, Recorda o bom da vida, Renova-se
Alegre coração de adulto
Agride, Sente ódio, mágoa e rancor
Difícil coração de adulto
Abençoa, Ora, Confia, Espera e Crê
Iluminado coração de adulto
Um dia deixa de bater
Passageiro coração de adulto
Deixa saudades e amor nos corações dos que ficaram
Inesquecível coração de adulto
Espiritualidade
Em um canto da memória
No decorrer da sua história
Um impulso divino o abraçou
A palavra amiga chegou
Para aliviar o cansaço
Trazer aconchego como um abraço
A prece sempre alcança
A situação mais dolorida da sua lembrança
Para viver a espiritualidade
Não é necessário ter determinada idade
Basta um coração aberto
E a certeza de que Deus está sempre por perto
A oração é a busca da alma pelo divino
A melodia que toca o coração como um hino
Uma proteção contra o perigo
Armadura que vence o inimigo
A intuição que revela
O pensamento que ilumina como uma vela
Tudo é sinal da espiritualidade
O toque divino na humanidade
Se você ainda não sente
O apelo divino em sua mente
Abra o seu coração
Para descobrir o poder da oração
Silêncio
Quando o mundo tanto fala
E ninguém cala
Há balbúrdia de pensamento
Sem qualquer entendimento
É tempo de tanto barulho
Exposição de opiniões com orgulho
As pessoas quase nunca meditam
E em tão pouco acreditam
O celular o tempo inteiro na mão
E tão pouca habilidade para abrir o coração
A rede social repleta de fotografia
E a alma quase sempre vazia
Tanta crítica direcionada para o outro
Sem observar dentro de si com esforço
A imagem é tão valorizada
E a profundidade do sentimento tão depreciada
Calar para não machucar
Silenciar para não errar
O silêncio traz resposta
E a realidade mostra
Menino Pipa
O céu queima a pele do menino
A rua deserta o expõe ao perigo
Suas pernas pesam por tanto caminhar
Nenhum adulto aparece para ajudar
O grande mundo é o seu único amigo
Enfado, Cansaço, Maltrato
A pipa pelo céu passeava
Enquanto o menino trabalhava
Sua família encarava a labuta como algo normal
Em seu parentesco o trabalho infantil era natural
Desinformação, Repetição, Peregrinação
O sonho do menino era ter tempo para brincar
Olhava o céu e via a pipa passear
As feridas nas mãos custavam sarar
O cansaço nas pernas demorava passar
Sofrimento, Desalento, Tormento
O tempo passou e o menino pipa cresceu
Com a vida adulta o sonho de soltar pipa floresceu
Quis que com seu filho fosse diferente
E o trabalho infantil expulsou da sua mente
Pai e filho agora soltam pipa
Mudança, Esperança, Confiança
Casa de vó
Bolo quente com café
Acompanhado de uma atmosfera cheia de fé
Conversa gostosa com demora
Brincadeira a qualquer hora
Aconchego na hora de dormir
Dor na barriga de tanto rir
Confusão de criança
Lugar cheio de esperança
Teto com ar sagrado
Roupa de cama com cheiro delicado
Comida preparada com amor
Ferida tratada sem dor
Lembrança cheia de saudade
Tempo para os netos de tão pouca idade
Roda de conversa na noite de luar
Passeio demorado sem pressa para chegar
Memória boa no coração do neto
Aconchego que proporciona um coração reto
Saudade de um tempo que não volta mais
Recordação alegre que traz paz
Laís Romero
Piauí - NE
Laís Romero nasceu em Teresina, em 1986. Publicou poemas em periódicos e blogs, contos em coletâneas e revistas, mas nunca lançou um livro solo. Participou do coletivo Academia Onírica, entre os anos de 2010 e 2012, com publicações da revista AO e gravação do disco de poemas Veículo q.s.p. É graduada em Letras, com mestrado em Literatura pela Universidade Estadual do Piauí. É a mãe do Luís e do Júlio.
latitude: -2,9018236 / longitude: -41,4601724

Poemas
Não procuremos a verdade
nós soterrados nas palavras
Ensolarados encaremos, nus,
os resultados da nossa apatia
Vastos pálidos campos rasos
de sentido e de sabor
Títulos nos assombrem fugidios
em ricos tipos e tipologias da fé
O ventre parideiro persiste
enterrando sua hóspede inanimada
é chegada, enfim, a hora marcada
para o dado fato exato
juízo animal
---
Minha poesia tacanha se arrisca:
vai sozinha às ruas
metafísica de garagem
feito irresponsável de mulher.
Uma poesia tímida e vadia
que se arrisca.
Há fogo e valsa nestas linhas.
---
Temos as mãos ainda entrelaçadas
no meio do apagão atrasado
uma linha de pessoas nuas
treme as estruturas antes perenes
um punhado de palavras domina o inerme:
- Venha, que o medo cede e não nos segue.
---
medonho bloco pesado grafite
sustentado por árvores e prédios
um outrora chamado firmamento
carregado por toda sorte de criaturas
habitado pelo princípio, construído pelo fim
grande angular coroada de passado
medonho bloco pesado
---
[Poemas são fraquezas em tempos de leituras feitas com os olhos vendados]
Com os olhos embotados
não é possível desenhar o céu
fica como estava, borrão calado,
de uma tentativa/fracasso
Com as mãos amarradas
não se acena no salão vazio
a cabeça continua baixa
e o suor amarga meu perfil
[coro]
Benditos os paladinos da esperança
vestidos por discursos verdejantes
coroados nas intempéries absolutas
de uma aurora desmontada
pelo vento.
Temporário
Revisito o templo vazio
E sonho comigo criança:
bacias de alumínio
laranjas
o chuveiro atroz
num quintal cinzento
assobios para chamar o vento
lembro
em tom saboroso e sombrio.
Sabrinna Mourão
Piauí - NE
Sabrinna Alento Mourão é editora da Micélio e escritora. Como escritora publicou dois livros de contos e um de poemas, respectivamente: In Vivo (Livrinho de papel finíssimo, 2017), O estágio mais rudimentar do fim (Castanha mecânica, 2020), e Ponto crítico da noite (Editora Micélio, 2020). Colaborou com revistas como Acrobata e Mallarmargens.
latitude: -2,8034617 / longitude: -41,7293321

Poemas
Em Creta a minotaura descansa ao sol
sábado e domingo é dispensada do palácio de Cnossos
vai à praia de nudismo com sua namorada
e arreganha sua buceta sumarenta
pensa em se mudar dali
as coisas estão difíceis e essa geografia não ajuda
talvez fosse melhor parar de matar pessoas no labirinto
talvez pudesse recomeçar em uma ilha pacata
fazer uns vasos ou uns utensílios de ferro
quem sabe poemas e com certeza
com muita certeza
fazer amor ouvindo o mar quebrando na praia.
---
aqui nada demais acontece
vez ou outra um similar
para a briga ou para o coito
mas realmente nada acontece
o que cai na rede quase nunca é peixe
mas plâncton ou um cadáver sob pressão
permaneço em silêncio
para não acordar o fundo do mar
e para o mar não me acordar
e quando alguém vê a luz no fim do túnel
é o começo do túnel
que dá na minha boca.
---
antes de sofrer de ansiedade
me reconheci ateia
e num momento entremomento
acreditei que todos os poemas metalinguísticos
já tinham se esgotado
no instante em que a primeira pessoa escreveu
a primeira letra com sangue em rochas
mas ontem sonhei que uma poeta
morria em meus braços e
se encolhia até ficar do tamanho de um gato
e eu depositava aquele pequeno corpo
sem vida em uma caixa de sapatos
todos se juntavam e faziam um show
com gaitas violões oboés bumbos e banjos
a caixa era incendiada no rio e as cinzas voavam
pensei em contar pra poeta e contei pra minha psicóloga
que disse pra eu contar pra poeta
que disse pra escrever um poema
metalinguístico
---
a cidade é aquela casa onde alguém
pisa com os pés sujos
no chão em que a gente acabou de passar o pano:
você pode ser o pedreiro que bota o cimento na calçada
ou você pode ser o gato que passa sobre a obra sem se importar:
às vezes você é os dois.
---
mesmo a menor das cidades
possui uma periferia:
de lá os marginais olham para o centro:
a bicha pão com ovo olha para o playboy gigolô
a funcionária olha para a patroa infeliz no único relacionamento que teve na vida
o pedreiro olha para o prédio onde nem ele nem o corretor morarão
o vendedor de churros olha para um quiosque no shopping
mesmo na menor das cidades
há quem sonhe em ser igual
àquele que mata seu sonho
---
toda cidade possui
um ponto tão maciço
que deforma o espaço-tempo
no centro desse vórtice
quatro velhos jogam dominó
---
tudo sempre seguirá seu curso natural:
as cerejas serão colhidas e se reduzirão aos grãos torrados
que descerão 1300 metros desde a fazenda até meu moinho na beira-mar
numa quarta-feira nublada na Pedra do Sal
tomo o último gole enquanto traduzo do russo
o último gole enquanto você traduz o mundo
sorrimos em silêncio e uma onda quebra distante
logo será noite e as naves iluminarão nosso caminho
Tarciana Ribeiro
Piauí - NE
Tarciana Ribeiro é poeta, taróloga, mulher e mãe. É idealizadora do projeto Lambe de Longe. Foi publicada na antologia POESIS 2019 (ed Vivara) e na Antologia Líquida, organizada por Allison Carvalho. Seus projetos envolvem saraus e a confecção de seus próprios zines.
latitude: -5,090699 / longitude: -42,813643

Poemas
Cazuzada
E tão pouco queres saber?
obrigada
pelos dias de outono e pelos
dias de inferno
obrigada
pelo soco no estômago
e pelo cuspe no peito
muito obrigada, não nego
obrigada pelas doses corrosivas
e por ecoar back to bad
às duas da manhã de uma quinta-feira
humilhada e radiante na avenida
por bater o dedo na quina
e chorar igual criança
por sentar-me na esquina e transloucada gritar
muito obrigada
pelas cartas de mentira
e pela perda de tempo
pela consideração jogada no vento
muito obrigada
pelo vício maldito
pela tristeza entalada
pela garganta em soluço, pelo corpo ferido
muito obrigada
pelos copos divididos
pelos cigarros engolidos
pela saliva espalhada
muito obrigada
por ter me largado
igual cachorro abandonado
atropelada, chumbada
meu muito obrigada
por ter me deixado versos fatais
inconformados, mas originais
pelas noites in dope
muito obrigada
pelo vazio
pela mão solta
pela tormenta do abismo
obrigada demais
por me ensinar que a felicidade cessa
que a pele humana interessa
mais que olho irmão do cuidado
obrigada por rasgar com a boca todos os laços
espalhar as gotas do meu coração nos umbigos
e peitos
e bundas
entre gemidos
pelo riso distante
hoje muito mais inconstante
tal qual a efervescência
que acompanha a ti e aos teus íntimos navegantes .
pelos fantasmas
pelas camaradas
pela parede amassada
pelo olhar trocado na avenida sulista
muito obrigada
obrigada por foder muito com tudo
por desalinhar o prumo e ficar em cima do muro
nas interrogações surgem as criações
e, por isso, muito obrigada
melhorei a escrita
aprendi a flertar
sou teu orgulho de riso alto
sirvo muito mais pra amar
obrigada
por ter se mandado
agora escuto a mim muito mais
tens razão
nunca foste sublime
excitado pelo efêmero
você é perdido demais
obrigada por escancarar os portões
me fazer enxergar
que essa trama toda deu um livro
a editora quer lançar
obrigada por ter me ensinado
a jamais oferecer a outra face
pois o cruel é o velho mundo
por que não tripudiar?
obrigada por ter me largado
sem eira nem beira
nenhum cuidado
e ter cogitado nunca mais voltar.
DEVANEIO DE OLGA: O outro lado do olho.
Aparadas as arestas e findados foram os questionamentos. Silêncio na multidão. Grito pra dentro e entre os muros deslizam as pernas. Queimo pouco, ardo muito. Bruta. Toque na cervical. Flor. O homem inquieto amansa na madrugada e fixa o olho do lado de dentro: na nuca. E some, some como os bichos. Homem bicho. Bicho homem. A estrada silenciosa e o viajante, taciturno. Nada mais? Silêncio no alçapão. Tão longe as miragens estão que o tempo carrega agora outro significado, não o de calendário, o quântico. Um átomo e outro. Quando a fricção da pele faz a fricção dos cílios. Tua arquitetura era barroca, meu corpo era barroco. Dark. Dark e inteligível. Memória é conhecer. Inteligível. Bom adjetivo. Dou-me bem com os adjetivos. Tenho tempo para o que absorver e muito mais gosto do outro lado do olho. Aberto, sempre aberto. Escuro, quase sempre escuro. Meu corpo se adapta ao espaço a ser penetrado. Tua retina é densa e morna. Teu olho é de quem morde pra tocar a alma. E toca. Me olhando assim de lado, teu olho alerta meu psicoestado. Silêncio na comunicação. Dedo fala. Falam a língua dos dedos. Silenciosos. A boca é nada quando quer ser cautelosa. A boca é subordinada. Dedo e olho, as duas verdades. ying yang nu e cru. Para onde vão as coisas não vividas? Então as coisas não ditas... todas elas, têm uma gaveta de coisas escritas? Começo a compreender que falo. E posso falar. Ou pela boca ou pelos dedos. Sei bem o som das cavalarias partindo às quatro da tarde. Falo com o olho também. Galopar liberta e cansa. Afasto-me da foice em contentamento. Confesso não querer achar a fonte de nada, não me cabe mais a vaidade dos homens, é através do delírio alheio que eu alucino. O meu silêncio inexiste do lado de dentro do olho.
DEVANEIO DE OLGA: O LAPSO
Tempo é lâmina. Sono é afago. Acordar no meio da tarde e lembrar que na ponta do teu nariz existia um cachorro e uma samambaia me traz o gosto amargo da inexistência. Não da inexistência de nunca ter existido, mas da inexistência de ter se desmanchado. Então, nos dois pontos que interligam as tuas sobrancelhas, também habitavam girassóis janelares e vapor no basculante do banheiro. As ruas estão lotadas. Transbordando. Se lembro de ti quando passo o portão tenha certeza: Um corpo inteiro sem voz me acompanha nas avenidas. Teu corpo longe é três vezes maior que o teu corpo perto. Me esmaga num grau indecodificável. Tua voz longe é ensurdecedora. A bolsa dos teus olhos é quente. E de longe também. Teus olhos longe são inimaginavelmente maiores, e me despedaçam, porque estão fechados. Semicerrados não. Completamente fechados. Voz não some mesmo. Ecoam todos os sábados de manhã os teus passos te aproximando do portão. Memória trai. Botas. E por falar em lâmina, tomo vinte gotas a mais todo dia vinte e um de abril. De vez em quando encontro contigo na esquina, invisível e pego teu rosto no ar. Teu rosto impegável, teu rosto longe, e te pergunto: A minha ressaca de ti vai durar mesmo essa vida inteira? Quando a lua míngua, tenho a impressão de que tudo vai se quebrar, então cuido bem do esôfago. As coisas de dentro vibram de medo. Tenho menos medo da morte. Soluço. Ainda por cima, além dos móveis arranhados e a camisa no cabide, levas também as minhas referências? Sempre te tive por bicho manso, mas nunca te achei bicho ingênuo. Os meses passam enquanto eu costuro a minha própria mortalha. E isso pode soar um tanto quanto febril e denso. São assim os calabouços. A minha distração é cuidar da carne viva que todo dia sangra. Todo dia sangra. Todo dia sangra. Todo dia. Ademais, descobri: esse é um sentimento tão velho quanto o mundo e que eu não fui a primeira nem a última a cair no abismo das coisas que nunca acontecem. Gargalho muito. O plano era meu. A ideia tua. Tua curiosidade é má. Quem faz vencer a banalidade ao invés das coisas eternas e afáveis? Toca Arrepiado quando entro no carro sem imaginar que vou aprender: tempo é lâmina.
DEVANEIO DE OLGA: REFRAÇÃO.
Ouço ruídos infinitos vindo em direção à Terra. Quase apaguei este verso. Vertigens. Pigs. Meteoros cármicos encontrados debaixo dos escombros. Não ouço uma só voz. Ouço um sax, um piano e um violino. Não, não ouço uma voz sequer. A humanidade se enche de graça na sua individualidade canibal. Agora tudo é sereno e lembro que ainda tenho o céu. Eu ainda apoio o pé esquerdo na parede enquanto escrevo. Eu ainda me disponho a, energeticamente, me abrir com aqueles que permaneceram. Me sinto macia e coloquei letrinhas num cronograma na parede azul. Desejo uma onomatopeia que glorifique a dádiva de não enlouquecer no fim do dia. Compro fácil na farmácia. Sobrevivente de verdade vem com a receita na testa, como tatuagem. Não faço risquinhos nas paredes contando os dias, conto cada gota, gota a gota derramada numa orquestra sinfônica composta pelo silêncio dos invisíveis. Você sabe de quem eu falo. Vem cá, me dá a mão. Somos todos. Eu juro que busquei mil respostas, eu ainda as busco. Muitas vezes eu olho a lua e atravesso até o seu outro lado cavalgando num arco colorido. Sou espírito que habita dedos e os dedos são perigosos. Tocam. Tocam teclados e estraçalham um com palavras. Preciso fazer um combinado coletivo e estou vendo quatro paredes vazias. A sorte é que suas cores não me causam vertigem. Aceito brincar de sobreviver. Cada dia a mais é um a menos pra quem vê de cima. Eu rastejo entre os salões e as calçadas querendo areia, água, rede e varanda. Me deram a escolha de morrer pelos dedos, mas ainda não tiraram todas as vidas de dentro de mim. Nenhum absurdo sentimento de impotência me invade. Reconheço o império e a nobreza das sinfonias de dentro. Meus olhos estão direcionados aos espelhos não visitados. Sinto-me em confortável por ter um domínio linguístico que me expande. Mas o que falo é o que falo e ponto. A matéria-prima da poesia é o caos. Não sei se fico feliz em me demorar a escrever ou se ignoro tal fato e me acomodo em minha própria mobília, recebendo de vez o que se demora em mim e escorre por entre os dedos, mas continuará sempre do outro lado da lua. Um letreiro luminoso: Mente sob...
Thaís Fontenele
Piauí - NE
Thaís Fontenele nasceu em 2001, em Parnaíba, no Piauí. O seu primeiro poema foi publicado pelo jornal Piaguí, um veículo informativo cultural da cidade de Parnaíba.
latitude: -2,9191221 / longitude: -41,7597862
Poemas
Mês oito
onde nasci
quando nasci
agosto em desdobramentos atípicos
quantos chinelos me trouxeram até aqui?
quantas solas ainda terão que aguentar meu calor em atrito com a terra?
das coisas que fui atenta
nesse impasse de ser
nas redes que me balançaram
nessas ondas que me perpassaram
barro que moldei a vida
finquei camadas abstratas
rabisquei papéis
neste pertencimento
nasci
poeta do mundo
todo delírio de verbo
vem de lugares inexploráveis
como uma poeira que surge e não se sabe como.
Selva de pedras
mostre-me como se despem as árvores
presas na gaiola da vida,
politize tanto minha língua
que eu seja capaz de colocar-te
aos lírios das pedras,
as flores da selva.
---
Saí do buraco da origem do mundo,
dolorido, uterino, por isso e por muito
pouco, sou rasgo sem possibilidade de
cicatrização.

Levar-te
Desejo que se engasgue
comigo
dentro da tua boca
Engula minha carne
como quem bebe todo o ouro
Na tua língua
A política
O vinho
Todo o meu corpo
A intimidade é do tamanho dos teus seios
A filosofia da paixão cabe num escarro
Os encontros nas distrações
A água que mata a sede
Parte da linguagem
Os dias
A terra
A luz da janela
Tuas costas nuas
Todos os ventres.
---
Nossa mania boba de sempre esquecer
Que as raízes se fixam lentamente.
Vanessa Trajano
Piauí - NE
Vanessa Trajano (1992) é teresinense radicada em Brasília-DF. Além de escritora, é roteirista e professora de Língua Portuguesa com mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí. Publicou ao total 15 livros, entre participações em antologias e obras individuais.
latitude: -5,0912447 / longitude: -42,8133934

Poemas
Puteiro
No puteiro de D. Eudóxia
É sempre meia-noite
Oportuna transição
Entre os que nasceram tarde
E morreram ontem,
Sobretudo anteontem
Lá reside a mulher fatal
Vermelho nos pés
Vermelho no corpo
Vermelho na alma
Alma propositalmente fatalista
Na mão um cigarro
Na outra, a bebida;
A boca vermelha, ferida,
Sugere o poema e o giz:
Se te entrego minhas forças
Sou louca, não trouxa
Melhor ser infeliz
Vestir verdade
Sem roupa
Mas os dentes,
Afiados na infantaria,
Avisam: cuidado com o sorriso
Que ambientou desgraças
Dele não se morre
Por ele se mata.
Mulher em partes
Eu não sou inteira
Sou feita de partes
Não todas juntas
Nem apartadas
Apenas somadas
Uma a uma.
Há partes minhas
Por aí soltas
E, quando eu as encontrar,
Perderei outras.
Partes, quantas partes?
Fazei de mim tudo
O que cada parte queira
Qualquer coisa
Menos inteira.
Desafeto
É mais doloroso ficar.
“não vá agora”, disse ele.
No entanto, meus pés
Já estão fora de mim
Longe, a 60 minutos,
Numa casa de praia
O mar beijando os ouvidos
A roupa esvoaçando na janela
Quero morte sem pressa
Todo amor acontecendo
Às três horas da tarde.
É mais doloroso ficar.
Então me estraçalhei
Nessa fome letal
Que tu já conheces
Mas que de maneira
Alguma te afeta
Todo amor só é vivo
Se recomeça.
---
[De todas as palavras...]
De todas as palavras,
A que mais me envergonho
É a palavra amor
Nunca aprendi a proferir: “Eu te amo”;
Gostaria, no entanto,
Que entre mim e o verbo
Nada existisse de oblíquo
Só assim poderíamos,
Quem sabe, amar
Sem aquelas tolas advertências
Da carne da qual somos feitos.
Procura-se um amante
Procura-se um amante
Que compreenda a língua das paixões;
Que entenda a arte de amar
E não desaponte sua amada
Com subterfúgios frágeis;
Que não saiba a hora de partir
E fique quantas horas a mais
Pedir o corpo;
Que se enfureça com a despedida
E não respeite as normas;
Que seja bom contador de mentiras
Para fugir da vida e mergulhar no sonho;
Que sofra com a ausência,
Mas que faça do reencontro a infinitude;
Que sirva sua mulher sem cansar,
E sempre tenha tempo para uma causa impossível.
Procura-se um amante que dê a dor que uma amante merece
Quantas dores forem necessárias para um prazer sem fim.
Procura-se um amante que só saiba amar
Mas sem saber o que é amor
Paixão de bar
Eu vi um homem careca na outra mesa. Não se espante com o nome ‘careca’, ele não era velho e, mesmo se o fosse, não teria problema – eu o amaria do mesmo jeito. Foi a paixão mais rápida da minha vida. Ela durou cerca de alguns milésimos de segundos, no cruzeiro de um olhar, durante a ventura do encontro súbito e espontâneo das nossas almas, por meio de olhares assim meio curiosos, assim meio turvos, assim meio inquisidores. Eu bem que gostaria de conhecer a existência através e dentro do cristalino daqueles olhos, tão soturnos e paralisantes! Se alguma coisa me ficou daqueles olhos, acho que foi um certo grande Amor, daqueles devastadores, que tatuam a gente, aquém da nossa percepção. E foi exatamente isso que me atingiu bem no peito: um todo amor que chegou até a mim enquanto fatia de eternidade, fixo no gritante intervalo de um segundo.
Nesse meio tempo, imagino que cavalgamos pelos vales do oeste, entendemos a limitação da intimidade, caprichamos naquilo que não se faz por capricho. Nós nos amamos, breve e braviamente, mas nos amamos. Ou não? O que não seria o amor senão isso? Adorar cada oportunidade de amar, de enxergar o outro, mesmo e tão somente que seja num único e intransponível olhar?