Adelaide Ivánova
Pernambuco - NE
Adelaide Ivánova é poeta e organizadora comunitária pernambucana. Edita o zine de poesia MAIS NORDESTE, POR FAVOR!. Em 2018 ganhou o Prêmio Rio de Literatura por seu quinto livro, o martelo, publicado no Brasil, Portugal, EUA, Reino Unido, Alemanha, Argentina e Grécia. É militante do movimento por moradia e direito à cidade DW. Enteignen, em Berlim, onde mora desde 2011 e onde tentava ganhar seu pão trabalhando como babá, garçonete, segurança, vendedora, atendente de salão de beleza etc.

Poemas
a visita
“and every bed has been condemned,
not by morality or law,
but by time”
Anne Sexton
quais as traças
aranhas piolhos
e outras bestas
infestam habitam
o colchão de visitas
que Humboldt não foi buscar
fingindo esquecimento
depois foi tarde demais
e estávamos apaixonados
demais para buscar
o colchão de visitas
na água-furtada
então ficou por isso mesmo
quais as traças
aranhas piolhos
e outras bestas
em outro colchão
maldito testemunharam
outro colchão
outra visita
o arranque
o violento
o sangue
bom sangue não houve
houve a chegada
e depois silêncio
por areia teia pó
musgo mofo aranha
eu pulei para outra
cama outras bestas
antes já haviam me
habitado formigas
ácaros piscianos
percevejos só as
traças e Humboldt
não me comeram
anos antes a desdita
embora areia teia pó
musgo mofo aranha
não pude nunca mais
sair daquela cama
há bestas menos confiáveis
que traças há hienas
potós peixes serpentes
se há dois no colchão
de uma visita sempre
haverá 1 que não é
inocente.
a banana
no porão tinha
uma mala dentro dela
josefine
que aí se escondia com
a ajuda da mãe para
que não fosse estuprada
afinal só se estupra alguém
que se acha o destino da
mãe não se sabe mas
josefine
está bem obrigada aos 11 anos
comeu banana pela
primeira vez oferecimento do
oficial francês que também
dava abortos às alemãs
que não tinham martelos
ou malas.
para laura
em 1998 quando encontraram
o corpo gay de matthew shepard
sua cara tinha sangue por todo lado
menos duas listras
perpendiculares
que era por onde suas lágrimas
haviam escorrido
naquele dia o ciclista
que o encontrou não
ligou logo que o viu pra polícia
porque o corpo de matthew
estava tão deformado
que o ciclista achou ter visto
um espantalho
sábado passado em são paulo
um grupo de homens
e dois PMs mataram laura
não sem antes
torturá-la laura
foi vista ainda viva
por outro sujeito
que gravou
e postou no youtube o vídeo
de uma laura desorientada
e quem não estaria
com sangue jorrando da boca e da parte
de trás do vestido?
laura tem um corpo
e um nome que lhe pertencem
laura de vermont (presente!)
foi assassinada
por homens
pelo estado
e pela nossa indiferença
aos 18 anos
num sábado.
Ágnes Souza
Pernambuco - NE
Ágnes Souza é poeta, pesquisadora e professora. Tem dois livros de poemas publicados: re-cordis (2016) e Pouso (2020), pela Editora Moinhos; e poemas publicados em diversas coletâneas no Brasil. Também publicou no zine Como gozar antes do pôr do sol (2021); e em Portugal, A Bacana, Poemas reunidos I (2018); além de poemas soltos na Ruído Manifesto (2018), na Aboio Revista (2020) e na felisberta zine (2020).
latitude: -8,0641606 / longitude: -34,8798635

Poemas
Cadela de três patas
uma cadela de três patas e um ímã
me acertam num mesmo ponto
pois assim como uma cadela de três patas
não é apenas uma cadela de três patas
um ímã nunca é somente um ímã
sobretudo porque uma cadela de três patas
habita há semanas minha memória recente
penso em associações práticas com a morte
em analogias com o desequilíbrio
com qualquer diálogo com ausência
mas uma cadela de três patas
me diz mais sobre equilíbrio e presença
do que qualquer outra coisa
durmo acordo tomo meu leite fermentado
pensando em seu pelo clássico cor de caramelo
seu sorriso disponível de vira-lata
seu rabo a cortar o vento
e que um ímã pode ser apenas um ímã
mas uma cadela de três patas
de modo algum é
somente uma cadela de três patas.
Cama é uma fortuna, compre um abajur
a primeira coisa que fazia quando chegava em casa
depois de tirar os sapatos e checar
se a casa não havia se incendiado na sua ausência
era depositar sua cabeça na prateleira do meio
de uma cristaleira que havia ganho da mãe
esse era o movimento que mais ansiava durante o dia
e pensava: - que luxo viver sem cabeça
no banho se sentia uma grande atriz
ensaiando o discurso inspirador que daria
ao receber um prêmio pela vida&obra
tomava longos banhos de cuia do pescoço para baixo
como se estivesse numa cachoeira com água morna
vestia seu pijama
(uma blusa larga que alguém esqueceu no sofá
e ela não se preocupou em saber a quem pertencia
se estava na sua sala era da sua sala)
sentava-se torta na rede para checar a caixa de entrada
do seu e-mail lotada de propagandas
então abria aleatoriamente promoções de máquinas depiladoras
e camas box de casal
manuseava o teclado como se tivesse tocando uma
peça dificílima para piano
pensava em adotar um cachorro
para ter o prazer de se imaginar numa passarela
curvando-se com elegância para apanhar cocô
esquecia-se de jantar de lavar os pratos do café da manhã
de retirar e jogar o lixo de ligar para pedir água
de comprar frutas de encher as cumbucas de gelo
de estender as roupas de ferver o coletor menstrual
dirigia-se até à cristaleira para recuperar sua cabeça
e enquanto ajustava seu encaixe
cambaleava no escuro em direção à cama
para poder enfim
pensar na morte e inaugurar seu abajur.
você e eu dançando ciranda sem nenhum ensaio prévio
de mãos dadas com estranhos sorrindo entre si
eles erram os pés acertam os pés
para não saírem do ritmo
você sorri inclinando a cabeça para trás
errando os pés como todos os outros
todos nós erramos os pés
eu penso
mas só você esfrega os olhos depois de sorrir
a música parece interminável
é a mesma que toca em todas as festas de rua
eu tocaria ela numa festa para você
é bonito um monte de estranhos brincando
juntos em círculos
você aperta a minha mão quando perco o ritmo
na tentativa de me recuperar
eu sorrio inclinando a cabeça para frente
te olho de banda
e você está apertando a mão de um estranho
estamos todos tentando nos recuperar
a música acaba
você me beija e antes de ir pegar água me conta um segredo
que não gosta de ciranda
mas que é impossível negar algo em que todos dançam sor-
indo
o que me põe em dúvida se retiro ou não a ciranda
da festa que um dia eu darei para você.
segunda de carnaval
beijar você no meio da rua
no meio da troça amarela e roxa
o zíper da sua pochete
enganchando na minha meia arrastão
meus amigos gritando “andou, andou,
andou”
sinto gosto de batom cerveja e sucesso
enquanto a orquestra toca que
a gente acende
aperta
acocha
beija a nega a noite inteira.
I
deveríamos aprender mais
com o comportamento do lodo
observar de perto
como ele busca
pacientemente
a umidade
não há precipitação
todas as etapas são respeitadas
uma a uma
pois ele sabe - mais do que nós -
que tudo depois do sim
depende
unicamente
da umidade.
Anaíra Mahin
Pernambuco - NE
Anaíra Mahin se atreve na literatura, música, artes cênicas e visuais. Pernambucana nascida em Recife mas com raízes no Sertão do Pajeú, viveu parte importante da infância e adolescência em uma antiga usina de beneficiamento de algodão na cidade de São José do Egito. Hoje reside em Vitória de Santo Antão, na mata Sul Pernambucana.
latitude: -7,4773976 / longitude: -37,2738108

Poemas
Toda asma
Sim, que tenha leveza.
Que amor ao contrário do que dizem
não precisa ter sofrimento
Que o vento encaminhe
Que amor que é amor, não fecha a janela.
Sim que deixe em paz
Que amor, pra que viva, não sufoca
Há de respirar mais e mais...
Sim, também, que compreenda
Que amor que é amor compreende
Todos os pesares
Todos os sofreres
todos os clichês
Todas as clausuras
Todas as agonias
As inquietações
Todos os suicídios
Toda a asma
Que amor, pra que viva, não sufoca
Há de respirar mais e mais...
Só sei que existe
Passarinho, morcego,
Peixe voador...
Avião, bola-de-gude, peão, pinhão...
Vento batendo na porta
Menino brincando na rede
Passarinho batendo asa
Morcego dentro de casa
Pendurado
Num canto
Da parede.
Nunca vi peixe voador
Só sei que existe
Por conta daquele livro
Que o meu avô me deu
- O meu avô.
Gente batendo a porta
Minino dormindo na rede
Passarinho se calava
Menino se balançava
Pendurado...
Ande Nua
Sabe de uma coisa
Ande nua
Queime suas coisas
Pela rua
Se a moeda é flor
Prostitua
Caminho cantante
Escambo diamante
Trombar de elefante
Trompete
Crista e cacarejo
Quebrado o solfejo
Em Quebec
Carinho calmante
Vogal consoante
Um verso clemente e feliz
Cristo e cacarejo
A paz que’u almejo
Eu vejo em Francisco de Assis
Gosto de cheia
Ontem... Eu chorei choro aberto e saudade
E entendi que era grande a cidade
De pessoas que amor me tem
Grande... Agradeço com minhas mãos juntas
Pelo colo o cuidado o carinho
Permitindo esse choro todinho
Imenso... Algo penso e voando no vento
Companheiro da chuva do dia
Desse frio que me vem cobrir
Amo... Desse jeito me sinto mais forte
E as estrelas que indicam me o norte
São vocês que estão por aqui.
Ciclo... Não careço conter tanta água
E esse dique que é meu diafragma
Borboleta girando em moinho.
Plano... Pronto o pouso o planeta a passagem
Importante que é a viagem
Toda ela provém do caminho.
Uno... Um chuvisco um riacho um açude
Vai rodando a bola de gude
Que é mundo e é olho também.
(16 de agosto de 2008, depois da primeira noite em lua cheia...)
Veias
Quase nos tiram nós
de nós mesmas.
Quase...
Investigo-nas,
nós mesmas.
Minhas velhas,
nas minhas veias.
No tempo das ancestrais
No tempo das ancestrais
Esteios, raízes, sonhos
Flores, folhagens, banhos
Contos, cantos divinais
No tempo das ancestrais
Mosquiteiros e descansos
Patos galinhas e gansos
Terreiros, sítios, quintais
No tempo das ancestrais
Rezas, enfeites, anáguas
Rosas, ervas, bentas águas
Sincréticos rituais
Explanações cambiais
Sapiencias e saberes
Profecias e dizeres
Considerações, portais
No tempo das ancestrais
Curandeiras, benzedeiros
Boticários viajeiros
Frascos, perfumes astrais
No tempo das ancestrais
Goteiras em caçarolas
Recados e camisolas
Pecados originais
No tempo das ancestrais
Segredos, arcas, baús
Casas grandes, urubus
Amor de primos carnais
No tempo das ancestrais
Coisas de couro, couraças
Jabutis e carapaças
Jugos, preceitos morais
No tempo das ancestrais
Abanos de palha, esteiras
Gentes vendidas nas feiras
Poderes podres demais
No tempo das ancestrais
Tostões, cruzeiros, reais
Ouro, prata, vis metais
Castas, classes sociais
No tempo das ancestrais
Cruzadas e castidades
Hipocrisia, maldade
Fogueiras eclesiais
No tempo das ancestrais
Caminhos longos, assombros
Desconstruções e escombros
Peregrinações gerais
No tempo das ancestrais
Alma, espírito, lamento
Um despertar lamacento
Em regiões abissais
No tempo das ancestrais
Corpos, danças condoídas
Relatos de morte vida
Estórias de animais
No tempo das ancestrais
Algodão, linho e chita
Fazenda, linha e fita
Costura que se refaz
No tempo das ancestrais
Luas, sóis, ciclos, janeiros
Ventos fortes e maneiros
Renascimentos, finais
Paz da Senhora
Linda senhora a ema,
linda senhora a siriema...
Treze araras estressadas
e um tucano solitário
Parque treze de maio
Linda senhora a ema
linda senhora a seriema
Trancadas num viveiro
Macaco prego e gente
O guarda está sentado
"Não alimente os animais"
- Está escrito ao lado.
O pombo e a pipoca
A menininha chora
Argumentando ao pai
que não quer ir embora
O sol é frio chuvisca
É tardezinha e o céu cora
E a palmeira dança
Lindas senhoras as crianças,
Lindas crianças as senhoras...
Linda senhora a ema
Linda senhora a ema
Um homem negro e crente
Veste terno e gravata
Palestra sorridente
Gostei dele de graça
Linda senhora a ema,
E o pavão também...
A tarde entoa um canto
Paz da senhora, amém.
Bione
Pernambuco - NE
Aos 18 anos, os versos da cantora, compositora e poetisa Bione sintetizam a percepção do olhar de uma jovem atenta ao mundo em que vive. Após conhecer o Slam das Minas PE, em 2017, ganhou notoriedade, além de ganhar projeção nacional quando representou o estado No Slam BR, sendo uma das finalistas em 2018. Em 2019, lançou a mixtape Sai da Frente e também o seu primeiro livro, Furtiva (Ed. Castanha Mecânica).
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Poemas
Pernambucana
Poucos acreditavam no Nordeste
Até Bell trazer pra PE o troféu do Slam BR
Aí sim entenderam a parte do "não teste"
E é a essa galera mesmo que Baco Exu se refere
Eu não tô nem aí pra qual região tu prefere
Ou qual poeta do Brasil tu admire
E a única coisa que nos difere
É que enquanto tu planta ódio
Eu faço com que o jogo vire
Dane-se do que tu duvida
Só não pode duvidar
Da empatia na nossa essência
Porque se dependesse do Nordeste
O Brasil não teria fascista na presidência
Mas agora vocês vêm fingir demência
É que quando a gente ascende
Essa galera fica tensa
O único argumento que eles têm é a ofensa
Mas pra se referir ao meu povo
Dessa vez tu vai ter que pedir licença
O Nordeste tá presente
E dessa vez não é na cozinha do sulista
É poeta passando na timeline
E fazendo com que o xenofóbico assista
Não vim aqui pra limpar chão
Limpa o chão pra eu passar
Que eu sou turista
Esperavam que eu viesse serviçal?
Vocês vão ter que me aturar
Porque eu vim
Foi como AR – TIS - TA
Tu fazendo graça no circo
Eu recolhendo a lona
Tô arrotando vivência
E tu vomitando diploma
Usando as sandálias de couro
Que achava cafona
Antes não curtia brega
E hoje escuta Mc Loma
"envolvimento diferente
eu ensino a você... a você"
Pernambuco tá na casa
e é pra você entender
Então por favor, fica esperto
De qualquer forma, é progresso
Não é só sentando e quicando
Que o Nordeste faz sucesso.
Cida Pedrosa
Pernambuco - NE
Cida Pedrosa nasceu em Bodocó, Sertão do Araripe pernambucano, em 1963. Foi uma das militantes do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco na década de 80 e daí vem seu gosto e experiência com a récita. Publicou dez livros de poemas, sendo o mais recente Solo para Vialejo (2019), Prêmio Jabuti 2020 - Livro do Ano e Livro de Poesia.
latitude: -7,4329867 / longitude: -39,9944188

Poemas
Bicicletas voam
Na cidade que não vê.
Dor no app.
Haicai do livro Estesia (Edições Claranan, 2020)
rainha dos degredados
salve-me rainha
pois a vida não é doce
nem misericordiosa
hoje só tem panela
e um pouco de maçunim
o marido se foi para as bandas
do beberibe e vende caranguejo
na feira de peixinhos
salve-me rainha
antes que os de eva morram
sem direito a maçãs ou coisa assim
o gás acabou
os jambeiros do cemitério de santo amaro
desde ontem não safrejam
e minha filha menstruada
não pode frequentar o ponto hoje à noite
salve-me rainha
e desterre
esta vontade de incendiar a vida
e a dor que assola as mãos
Do livro Gris (CEPE Editora, 2018)
tereza
mãos enormes
as de geraldo
tào grandes que náo cabem
no corpo magro de tereza
quando se casaram
tinham planos de comprar uma casa
de varanda
e passar uma semana em bariloche
neste tempo
os peitos de tereza
cabiam inteiros nas mãos de geraldo
mãos enormes
as de geraldo
tão grandes que se espremem nas algemas
e não podem mais acenar para tereza
que nesta hora é conduzida
no carro do iml
para exame de corpo de delito
sob suspeita de estrangulamento
Do livro As Filhas de Lilith (Edições Claranan, 2017)
tradução
a vida
que de mim decifra-se
é pálida
como barro de parede do sertão
duro é o meu nome
prefixo da morte
a vida
que de mim decifra-se
é pedra
como gesso das jazidas do sertão
duro é o sobrenome
que me acompanha
desde o nascimento
a vida
que de mim decifra-se
é árida
para disfarçar a ausência do nada
que teima em dourar meus olhos
a vida
que de mim decifra-se
é volátil
como a palavra posta na tarde
como a letra escrita no fogo
como a voz dita ao vento
a vida
que em mim decifra-se
é viés de lua cheia vista entre nuvens
é corte de relâmpago em tarde posta
é trovão atrás da porta em tempestade
a vida que em mim decifra-se é sertão
em romaria
Do livro Gris (CEPE Editora, 2018)
mapas
quando o tempo do branco chegar
não terei gaiolas
gatos siameses
ou cachorro poodle
com coleira de marfim
com certeza
direi poemas indecentes
falarei de revoluções inacabadas
e de lugares que mapeei com minha alma
Do livro Gris (CEPE Editora, 2018)
Clarissa Xavier
Pernambuco - NE
Mestra em Teoria Literária e Literatura Comparada, doutoranda no Pós-Lit (UFMG), editora da revista Em Tese e assistente editorial das Edições Chão da Feira. Estudo poemas visuais, sobretudo suas relações com a memória e o silêncio.
latitude: -8,0486861 / longitude: -34,953273

Poemas
Não lembro que idade tinha quando fiquei sabendo o que era antes
Mas antes se tornou para mim a extensão do mundo tateável
Com as mãos alcançava meus pais, a poeira na escada
podia remexer as raízes da terra e esmagar
nelas frutas que não dariam descendência
O mundo era algo em torno dos vasos da varanda
Ouvia o latido na rua o canto e outro segredo
Com o sol já não podia me queimar
Não por não poder tocá-lo, mas porque me era proibido
pular da sombra nas infinitas horas de pico
Então remoía as ondas dentro do castelo de areia
Esbravejava o mar por minha conta
cada balde um arrecife plástico
Piscinas naturais em poliméricos sintéticos
Cantava na praia ou na varanda
Até que o mar me trouxe antes
E antes era mais que eu em tudo
Antes estava lá quando meus pais se conheceram
Quando os bichos da terra se tornaram
outros bichos e as plantas se cravaram em certas pedras
ao imprimir, com seus contornos na terra, xilogravuras do tempo
Eu não podia ter nascido até então
Era preciso esperar tudo acabar
A juventude das avós o nascimento dos primos mais velhos
Os casamentos os divórcios os namoros escondidos
os dias coletados por todas as fotografias
a nova onda do cinema os títulos
do campeonato pernambucano
a construção de um prédio
entre o mar e a janela
Mas o mar era ainda antes
nele o corpo diacrônico afundava
dava lugar à imersão das horas
Eu poderia cantar o mar, mas o mar era mais alto
Não havia nele a linha que me separasse
de antes
Evidentemente, a mesma que separaria antes
de mim
O mar era a vertigem
A navegação que alcançava todo o tempo
A ressaca renovada a cada instante
Quando enfim antes soltasse a minha mão
acordava pelo grito deveria
retornar à sombra
na hora exata
---
Pense no homem como a flecha
Considere que o arco é anterior ao centauro
mas o cavalo é concomitante ao homem
que produz com suas mãos flechas,
arcos, escudos e a morte de outros mais
e com seus olhos mira
o que ainda não vê
e com suas patas carimba pedras barro
folhas estilhaços de um mundo
dividido
Pense como deve ser o homem
hábil, irrompendo como fulcro inverso
sobre a superfície selvagem
que é também ele, que é cavalo
que é homem
Pense no ângulo de quarenta e cinco graus
do braço anterior à flecha,
perpendicular ao fio
do arco elástico
Lembre-se que primeiro se ouve a pata
pesada na pedra, mas que a pedra,
sem ela, permanece em seu silêncio
sem leite
Imagine que aponta para você
a bissetriz do arco
e para o alto a ligação do elástico
e de um lado o centauro
que não sabe se é homem, se é cavalo
e do outro você
que é homem que pensa
que é flecha
Neste rio
Há tanto o que ver na Terra
mas eu penso no invisível:
os rios que correm pelo céu da Amazônia
em direção ao sul da América
em São Paulo esse ano não virão
será que se víssemos voar
os peixes entre os prédios de vidro
pensaríamos mais no fogo
que lambe as folhas da floresta
ou no ar molhado contínuo
corroendo os metais da cidade?
se um dia visse a terra de lá
saberia daqui os seus segredos?
as partículas de ar
se embaralham em minha pele
mergulhada estou também
neste rio indivisível
---
Às vezes se afia
a faca do tempo
como se a um só corte pudesse
tudo tomar
tino
É preciso reestabelecer o sono
ainda que a coluna não suporte
o peso horizontal de um corpo
cansado há dias que perfazem
poucas horas arranjadas
para lhe dedicar
Como um cão que caminha
na contramão do tráfego
e sente pelo calor do escape
que as buzinas significam
qualquer coisa (embora não tenha lido
na autoescola as leis que enredam
os homens)
A quem aflige perder
a hora e a quem supõe
na vida em si o fim
um cuidado uníssono
desviará do choque
Dedico o corpo ao escape
O suporte ao sono
A faca ao tráfego
O horizonte às horas
O calor ao cão
E o choque aos homens
com cuidado
As pessoas e o desejo
1.
as pessoas são desejo
e desejo é uma planície alocada
sob a tampa da terra.
debaixo dela há vertigem,
e o verde que recobre florestas
que flutuam sem luz ou oxigênio,
(uma vez que se alimentam
das pessoas do desejo).
2.
as pessoas que não cumprem
os desígnios de seu desejo
desenvolvem, por sua vez,
o insaciável desejo do não-feito.
a irrealização toma suas faces,
fazendo pela pele que se irrompam
gargalos como fontes distendidas
de prazer –
incalculável como um lago
a olho nu, as pessoas,
ao contrário do que comumente
sobre elas se trama,
não perecem. A ficção das pessoas
do desejo é sua resoluta perseguição.
Às demais, o anteparo da demora
fielmente cumpre a narrativa:
não se espera um acontecimento.
3.
é comum ouvir do desejo
a figuração do fruto –
como um figo que após
ser liquidado pela boca
habituada é, sem fim,
reeditado
pelo fio do coração.
ao contrário do figo,
o desejo em si possui
finitude e finalidade.
deve o desejo ser medido?
assim como o poeta divide
a tristeza, também pelos dias
deve-se o desejo partilhar?
Danuza Lima
Pernambuco - NE
Mulher negra, pernambucana, graduada em letras, especialista em literatura brasileira e Mestra em Teoria da Literatura, faz-se professora da rede pública de ensino. Andou pelos caminhos da curadoria e edição de zines junto ao coletivo NAUvoadora. Em 2020, lançou Mantra e Sob a proteção da espada de Iansã, finalistas do Prêmio Mix Literário e editados pela Macabéa Edições.

Poemas
mas cuidaria de ter trepadeiras
I.
em meio a sombra, te rego
assombrações e delírio
gestos de prazer soam estranhos
quando não surgem de você
Jiboia verde e
para cada gota, adubo e cálcio
folhas ao redor, no corte
me recebem abaixo dos pés
tem uma areia grossa e
enquanto te enxergo, tenho sede
gestos de prazer soam estranhos
quando não surgem de você
II.
talvez seja isto:
a dança aérea da tua língua
que faz estaquia do entre as pernas
umbigo
- fundo abismo -
à boca
- cacimba tão somente de
arcos alvéolo-dentais -
III.
esta terra cheia de tudo
calcário
memória de ossos
carvão cascalhos
e não me chega até você
porque afeto sem olhar
não germina
IV.
e sendo caminho o meu corpo
à distância
amo esta mulher, planta
que trepa entre os meus dedos
e o amar esta mulher
me habita sem estar
faz crescer
nas paredes do quarto
esta fome de tudo.
que gestos de prazer soam estranhos
quando não surgem de você.
---
A mulher é um animal que chora
e sua glória é ver o sol entrar pela janela
como se fosse o último
ela pega linha agulha areia e palavra
constrói uma concha e se aninha embaixo
nácares e um cheiro terroso vêm do quintal
no sangue que a visita
na comida preparada com intento
no sal dos olhos
a mulher é um animal que chora
do carbonato de cálcio que a envolve
às lembranças histórias e um sono de costume
urge uma mulher
uma flor um sol
as frutas no chão
na foto pela tela do celular
a mulher é um animal que chora.
---
minha oração é o teu corpo
a palavra e o verbo, a verdade enfim.
imagem da minha memória:
esta redenção,
descanso.
meu pedido e rogativa
salmos escritos no teu riso
quando se mostram os dentes
no instante da tua mão estendida
e o convite
a deitar contigo.
---
sei do cio das tuas gatas
o tempo da água que ferve para o café
a duração da brasa, este cigarro
o tempo que leva um fiapo de pelo a percorrer o ar enquanto teus olhos dançam numa risada.
tudo isto na ausência do relógio.
vejo:
afeto e vontade
fito:
teu olhar
faca e sol
luz e lâmina.
tampouco a voz das horas
destas que desenham uma linha sobre a cama e
deitam teu corpo a fazer caminho
trabalho o olhar sobre esta claridade.
logo se vê presença em luz
e faísca.
a língua é uma fúria.
---
Para Mika Andrade
:
muito antes da palavra
é um olhar de fera
à espreita
fruta madura
manga-espada inchada
ligada à resina
poderosíssima cor
do olho fel
gasta tempo a pesar
do pé
e sobre as formas de se fazer
cheiro e verbo
neste intervalo
devora
tempo
lógica
o acetato que envolve
dos nomes das armaduras
aos óculos que escondem
as palavras
a memória
das estrelas
as cadentes todas
e anda
na ardência
e nasce
e vive
quase de vez
poeta.
Jussara Salazar
Pernambuco - NE
Jussara Salazar é escritora e artista visual. Tem diversos livros publicados e já foi traduzida para o inglês, o francês, o espanhol e o alemão. É doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.

Poemas
COM MÃOS SUAVES
a concha antiga
era o gesto
com que escavei a terra escura
e tudo, todas as raízes
eram fios ao vento
tramas aéreas
para bordar um manto
para cobrir a cidade que dorme
Com mãos suaves
era terra bruta
o trigo negro
com que amassei o pão
cozido em vapor cinza
e carregado em fardos rudes
na sombra da terra úmida
para alimentar a flor que ainda não
para derramar sementes
para destecer vãos
e um brilho de sol
acordar a cidade
---
AS NOITES
Longas para tecer
Os dias longos para
Destecer as noites
Debruçada sobre a janela
O mar lhe envia sons
O mar lhe abriga
Água
Grande mãe ancestral
Ela abre as mãos
Segura a concha
Leva a concha ao ouvido
O mar _ antigo e velho sussurra
Ela fecha as mãos
Como conchas
Para segurar o fogo
Para mantê-lo
Aceso
Pois as noites serão escuras
As noites e suas mãos
Seu mar
Como mãe
Tecendo um futuro
Como onda
Que se faz
E se desfaz
---
NÃO SABEREI
se o tempo é vapor
chuva
caindo
no chão seco
jorro de água feroz.
descendo
enxurrada abaixo
de qualquer beco
se o tempo é minuto
que se sabe
antes mesmo
que aconteça
ou se é poema
uma teima
pedra
cascalho
esmiuçada
onda
desfeita
---
DOIS PÁSSAROS COMO CRUZES em
Revoada na velha fotografia
Um branco
Um negro
Dois pássaros
Uma orquídea derrama seus
Bulbos
Serpentes
Sinuosas raízes ancestrais de
Um mar imaginário
Algas
Atrás das velhas paredes
E apenas um peixe translúcido
Dois pássaros são
Uma mulher e
Um homem
A rezar com
Seus pés mergulhados
Sobrevoando
Esse mar imaginário
Seus pés sustentando
Nossa casa
Suspensa por um
Tempo que há
De vir para
voar
---
TENS UMA CORÇA
TATUADA SOB O PEITO?
Aquela corça
Que viste no campo
Extraviada
Como uma letra solta
Na página como palavra
Que se desfaz contigo
A corça
Que risca o campo
A corça que corre
Livre
E seu pelo se levanta
Ondula
Dança
Como o vento
Balança ao tempo
E se recompõe
A cada planície
A cada nome que escreve
Quando risca o campo
Leve
A corça anseia
Por águas correntes
Palavras que passam
Como rio que se reescreve
E foge
Como ovelha
Que ninguém recolhe
E habita minha casa
A tua casa
E respira
Solfeja
Um canto torto
Quando corre
Com meus pés
Pelo campo
Com todos os pés
E respira mais uma vez
Com seu fôlego de corça
Tens uma corça
Com teu nome escrito?
Sobre todos os nomes
Há uma corça bíblica
Que passou por mim
E correu pelo campo
Extraviada
E me habitou
E habitou em ti
Laís Araruna de Aquino
Pernambuco - NE
Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife. É autora de Juventude (Ed. Reformatório, 2018), ganhador do Prêmio Maraã de Poesia de 2017, e Nós só compreendemos muito depois (Ed. Corsário Satã, 2021).

Poemas
Yes i said yes
amendoeiras, fruta-pão, ipês-rosa e hibiscos,
sombreiros e gramíneas, salsas e coqueiros
como amo as siestas, água e dipirona,
esses substantivos tão concretos como uma cachaça
na foz do rio formoso e do ariquindá
avistamos ao longe o inalcançado bar do mangue,
onde guarda-sóis cintilavam como laranjas suculentas
ou jujubas em uma cama de rúcula
– a ilha de guadalupe foi meu pasto interior
então rafa conversou a vida cabe em uma bolsa
a vida, não, uma casa; e eu disse volte em maio e julho
mal sabíamos que adiaria o voo e a alegria
rosinha, tudo dói tanto, foi o que escutamos depois
e entramos nos expedientes de quartos, notícias e portas
a vida sim é uma longa despedida
Sobre o mundo como vontade de poder
Para Cela
quando saltou sobre o muro e nadou na piscina
do prédio ainda em construção, tinha oito anos
e um desprezo por regras de propriedade. era
uma pequena Raskólnikov e desdenhava
normas estúpidas que reproduzissem a cruel dominação
que crianças pampers exerciam sobre crianças frágeis
e submissas. por isto, não era tributável das qualidades
morais em voga – dispensável dizer sobre a estética
menos que kitsch e middle class do rebanho de
infantes que frequentava. apesar disto, estava entre
eles porque quase confinavam com os limites físicos
do seu mundo. mas, então, primeiro negaram-lhe os dois
reais que haviam apostado. e ela subiu com as roupas
molhadas e os bolsos vazios para o seu quarto.
depois, compreendeu que, para eles, era um tipo
selvagem e andrógino – para eles, que só cultivavam
o que entendiam e eram tanto mais fortes quando em
comum professavam desdém em clubes de desestima
alheia. outros se revezaram no mesmo papel, trocados
apenas os nomes: os ferozes padeiros do mal;
os ferozes leiteiros do mal – os arautos das
congregações dos integrados, os que vão à missa
e comungam, ou não comungam, pagam o dízimo
e se pensam mais cristãos que o cristo, os que não
vão e têm piedade de si, os cordeiros e lobos que
se alimentam do mesmo pasto. and so it goes.
então, aos poucos, ela desceu ao fundo da ilha do seu
coração, onde preferia histórias como a de Crusoé
e era, em todo seu afeto, ignorada pela civilização.
agora, lê freuds, jungs, deleuzes – e explica alguma
coisa, ora outra e não pisa o território hostil da infância.
vezenquando, se lhe perguntamos se deseja sair
em férias conosco a uma praia, diz que não gosta
de se banhar e não mostra o corpo com facilidade.
prefere, diz, alguma quinta, menos frequentada,
onde beberá bastante vinho, falará sobre literatura
e sonhará viver como nos filmes de Rohmer.
Reiterações sobre um tema
o vento no canavial
as bandeirinhas de Volpi
os leões que Hokusai desenhou todos os dias
por 219 dias até morrer
a forma não se atinge nunca
na reiteração das coisas no tempo
as coisas – elas mesmas
são outras e tu
outro és
e o café as camisas brancas o assoalho da casa,
o qual pisaste e tornarás a pisar,
numa configuração nunca idêntica,
porque a madeira desbota e teus cabelos vão a cinza
viver – eis a fissura
é estar inacabado até o fim
Pais e filhos
meu pai quando conheceu o cemitério dos veteranos
em washington e viu as lápides brancas geometricamente arranjadas
disse é tão bonito, dá até vontade de morrer
ele não sabia o poema de emily dickinson em que
beleza e verdade conversam longamente de sepultura a sepultura
mas o enterro das grandes questões nunca é definitivo
embora a minha geração seja a do asfalto e da estufa
ando pelos campos santos da literatura e entre um copo
e outro, digo, entre um capítulo e outro,
volto aos tópicos sobre que não se pode falar,
mas não me calo, me exponho cruamente –
não nas livrarias: eu não vendo
se me perguntarem então você vai até o fim
responderei não, eu tenho a minha vidinha
e os meus fúteis e banais prazeres
meu pai começou a trabalhar aos doze, está na luta desde cedo
saltava de um ônibus a outro e entregava cartões de visita na cidade
vezenquando ele me diz o tempo de pegar pesado é agora
mas meus olhos seguem alheios pelos livros e os campos
de que ele está certo não duvido
o cortejo das árvores existe a despeito de mim e uma rosa é
sem o olho que a vê
este poema não oferece nenhuma redenção
não é pela graça do ser –
talvez seja pela graça de apanhar pitangas em dias de sol
e fazer versos no meio da tarde sobre o tempo
e como a autora sente por estar fora de casa
estamos no outono e chove a intervalos na califórnia
de certa forma, poemas sempre dizem sobre o tempo, o humor e endereços
outro dia, porém, escrevi algo sobre a caverna do início
e cela disse fale sobre a grande noite
quero dizer saímos da cavidade
como de uma grande noite – a do esquecimento
e cá estamos, à luz do meio-dia, e mais à frente está a fronteira
eu sempre estarei a meio caminho, tentando deixar vir à luz
uma certa luz que não ofusque, como as gotas de água na folhagem
após uma chuva de verão
eu recuso entrar docemente na grande noite
quero a memória de tudo e a do esquecimento
quero meu pai andando no bairro do recife na década de sessenta
meu pai nas ruas do rio na década de oitenta
meu pai todas as manhãs na porta de casa falando
feliz natal e um próspero ano novo
porque de um modo ou de outro todos os dias
guardam a possibilidade do dia
e eu quero estar lá, digo, aqui
e abrir a manhã como se parte perpendicularmente uma fruta
cravar os dentes fundos na polpa da fruta
e deixar que o caldo inunde a vida inteira
Legado
Para minha avó
Vovó, já bem tarde na vida, costumava contar
a qualquer que estivesse a seu lado
que a granja fora um presente do meu avô.
Ela dizia, numa voz feliz,
ignorava o que haveria de ganhar, mas fora ter com ele,
neste campo de silêncio e vento.
Minutos depois repetia, repetia, a mesma voz, feliz,
até de repente surgir súbito algo que remontava a seus quatro anos
e se interrompia por um momento
como Sísifo –
A granja fora o presente de meu avô a minha avó.
Aqui onde eu preciso nada que os pés descalços
na grama verde e o balanço das palmeiras imperiais,
coroas d’outro tempo.
Essa história é o legado do antepassado que não conheci
e o fio do presente se entrelaça ao tempo de antes
como uma voz ao eco de outra voz dentro da língua.
Na minha voz sopra a fala atávica do sangue no tempo.
(e o meu jeito de ir ao meio do mato, entocada,
é o doce legado do sangue)
Bem mais tarde, minha avó, que já perdera muito,
não conhecia mais este lugar de refúgio fora da cidade.
Aqui era como lá e ao quando se misturou
o presente de eternidades.
No entanto aqui é o lugar onde o deitar do sol
traz um brilho dourado às árvores que recortam o horizonte.
Não se pode roubar este presente
mas chegará o momento em que tudo será apagado
pela sombra do nada, restando um monumento de ruínas
fora do tempo, sepultado.
O exílio da memória é como um farol num oceano
profundo e escuro de águas impenetráveis.
Resplandece em meio ao nada, quando se perdem
– as pontas do tempo
Luna Vitrolira
Pernambuco - NE
Pernambucana, 28 anos, é escritora, poeta, atriz, performer, Mestra em Teoria da Literatura e pesquisadora da poética das vozes e da poesia de improviso do Sertão do Pajeú/PE. Ao completar 10 anos de carreira publicou seu primeiro livro de poemas, Aquenda - O amor às vezes é isso, finalista do Prêmio Jabuti 2019.

Poemas
eu amo sem conta
sem medida
clandestinamente
amo sozinha
desacompanhada
sem exaustão
amo breve e densamente
amo nos meus tropeços
nos desalinhos
nas horas vagas
nas noites vazias de uma dose de cachaça e perco a linha
porque amo sem direção
o meu amor me acontece
e me escapa
uma hora chama
na outra
fumaça
é quando meu juízo mole me denuncia
não é real luna
o amor não é real
é tudo lisergia
meus pés doem de pisar o chão
é como se o mundo me quisesse folha esquecida que de tão amarela não se sabe adormece e voa pelos ares de outras vidas
não é real luna
o amor não é real
é tudo lisergia
se bate na porta
corre
se nada
se afoga e morre
um suicídio matinal
o amor me rasga e me oscila
me toma me refrata
me inunda quando me diluvia
depois me larga em qualquer calçada
me cega se reverbera
me implode se dilata
depois me assalta e se extravia
o tempo grita
acorda
eu amo de amor e de raiva
um amor impreciso
eu amo de fogo e adoração
um desejo implícito
amo o que é ínfimo
como quem se curva a indiferença
amo de sonho áspero
sou mais acaso do que razão
e vivo impaciente
sou um corpo que se deixa esquecido
arde de horas na cama
se entreva da espera
como quem morre
como quem morre impaciente
deus o amor me gasta
quando irreversível
me evapora
me estende
me sublima
sou eu essa mulher que definha
e que teme se tornar invisível
---
o amor é feito bala perdida
que acerta um desavisado
ao cruzar a rua
ao dobrar a esquina
às vezes vem num soco
às vezes vem num grito
o amor às vezes é isso
uma panela de água fervendo
no rosto de alguém querido
às vezes esmola
às vezes migalha
que se devolve com um tiro
ou acaba em facada
o amor tem medo da vida
uma hora eleva
na outra arrasta
desconfia da sorte
tem medo da falta
o amor corresponde à entrega
com uma rasteira e às vezes mata
de tirania
de asfixia
de ciúme
de raiva
como alguém que se alimenta
e de repente engasga
---
o amor está morto e enterrado
soube esses dias
que foi arrastado pelas pernas
pra um terreno baldio
parece que não teve direito a velório
por motivos de
estado avançado de decomposição
o amor apodreceu
ficou só osso
não recebeu flores
não recebeu velas
nem mensagens
da multidão desconhecida
estava desaparecido
disseram que foi estrangulado por ciúme
que pediu socorro
mas ninguém ouviu
a vizinhança dormia
e dorme
o amor está morto e enterrado
---
em nome de deus
quantas mulheres foram agredidas
ameaçadas de morte
e mantidas em cárcere privado
em nome de deus
quantas morreram apedrejadas
quantas foram esfaqueadas
degolados os sonhos em sacrifício
em nome de deus
quantas perderam seus filhos
quantas dessas mulheres sumiram
quais tiveram a chance de volta pra casa
em nome de deus
quantas morreram espancadas
quantas foram asfixiadas
esquartejadas pelos próprios maridos
em nome de deus
do espírito santo
ou do amor divino
quantas viraram estatística por feminicídio
Manuella Bezerra de Melo
Pernambuco - NE
Manuella Bezerra de Melo é recifense, autora de Pés Pequenos pra Tanto Corpo (Urutau, 2019), Pra que roam os cães nessa hecatombe (Macabéa, 2020), ambos de poesia, e de A fenda, seu primeiro livro de ensaio no prelo da editora Zouk. É jornalista mestre em Teoria da Literatura e, atualmente, bolsista no Programa Doutoral em Modernidades Comparadas: Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho, em Portugal, onde vive desde 2017.

Poemas
andei
gastei as canelas
só pra te ver encostado
na esquina
mudo
bem debaixo daquela árvore bonita graúda
de tronco largo
parei do outro lado apoiada no muro branco
tangente à grade esverdeada sentei no sofá
vinho
que puseram no meio da rua e
entre um e outro gole
fi tei por longos minutos atravessada
feixes de luz teus pelos úmidos
caleidoscópio dourado
---
revigorar o dorso
liquidar a tristeza
revertê-la em água e sal
sobrar pro mundo
salivar pelas beiradas
suar como porca em cruz
meter o dedo na goela
na ferida no cravo na unha
encravada do anelar esquerdo
pra restar o de sempre:
a boca elástica
um mundo de dentes
---
Uma bandeira tremulou uma mulher
que andou o oásis inteiro no seu rastro
Uma mulher atravessou um deserto
a cuspir na boca do seu filho com sede
lá encontrou outras mulheres cuja
sede é o motivo das travessias
Uma criança com sede carregou uma
mulher no seu lombo até que
pudesse ela chegar ao outro lado
do deserto em segurança desta vez
Uma mulher arrasta nas pernas
uma bandeira, uma criança, um deserto
Micheliny Verunschk
Pernambuco - NE
Micheliny Verunschk é autora de livros de poesia e prosa. Seu primeiro romance, Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (editora Patuá, 2014) foi agraciado com o Programa Petrobras Cultural e com Prêmio São Paulo de melhor livro de 2015. É mestre em Literatura e Crítica Literária e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC São Paulo. Foi membro de vários corpos de jurados de concursos literários brasileiros, entre eles o Prêmio Jabuti e o Prêmio Sesc de Literatura.
latitude: -8,4195151 / longitude: -37,0589394

Poemas
Olhe para mim
Fang Yin
olhe para mim
a lua é uma flor
que explode
em pétala
e um jasmim
gravita
em torno
de um diminuto
planeta Terra
olhe para mim
toda luz
reside à flor da alma
na paciência que tece n
um campo inteiro
um único botão de malva
olhe para mim
há um jardim
para além da tua casa.
Yosefa
olhe para mim
há um jardim
para além dos territórios
do esquecimento
uma promessa
pousada
sem fim nem tempo
olhe para mim
entre nós
uma única palavra
e olhos que se espelham
numa gota d'água
dois corações
abertos
como um par de asas
olhe para mim
há um jardim
para além da tua casa.
uma mulher que escreve
você já observou uma mulher que escreve
durante o ato da escrita?
já viu como emana dela luz e poder
que não são de outra estrela
senão dela mesma e do que conseguiu
angariar como alimento,
asteroides seiva outros corpos em expansão?
os pontos luminosos dos seus olhos
se abrindo e fechando em fractais
de energia puríssima?
você já se surpreendeu
com uma mulher que escreve
durante o ato mesmo da escrita?
já viu a simplicidade da mão
marcando o papel sob a força
da tecla ou da caneta
como se fosse um exercício fácil
esse de dar materialidade aos espíritos
que pairam nas ideias?
foram tantas e tantas eras para chegar até aqui!
foram tantas pedras a carregar nas costas!
tantas cinzas a sufocar gargantas
a entupir os poros.
você já observou uma mulher que escreve?
algo nela se torna iridescente
da tempestade dos neurônios
às pontas dos dedos,
bem ali no limite lunar entre a carne e suas unhas.
nada mais simples que uma mulher que escreve.
nada mais insurgente e capaz de gerar beleza
esse lugar para o qual todos fomos destinados.
---
mar aberto: meu coração agitado
rebate contra as pedras
o sol espelha na água
seus cacos de vidro
e me cega.
mar aberto: meus pés tocam o fundo
e a areia reverbera
música de dentes
garras guerras guelras.
mar aberto: onda que vem
onda que vai
me devolve
e me leva.
todos são inocentes
todos são inocentes
quando vítimas inocentes
da tragédia
a tragédia
não o drama grego
de deuses semideuses e heróis
o trágico acontecimento
do caminhão que explode
e faz estremecer a cidade
o mundo
da torre que desaba
não pelo dedo de deus
mas pela bomba
dos tiros disparados
onde o alvo são todos
todos os inocentes
as vítimas inocentes
que outro dia respiravam
aliviados
ante o noticiário
oh! ainda bem que não fui eu.
todos são inocentes
quando vítimas inocentes
transeuntes desavisados
em direção à morte
todos somos inocentes
quando vítimas inocentes
desse teatro sem coro
sem catarse
sem lógica
todos inocentes
quando vítimas inocentes
carne para moer
dada aos poderosos
aos donos das armas
aos cheios da grana
aos incendiários dos empréstimos
a juros amortizados
todos inocentes
quando vítimas inocentes.
Ophelia
um par de seios
boiando sobre as águas
e a ilha submersa
um emaranhado de raízes
bulbos filamentos.
cinco palavras giram
ao redor da lâmpada:
todas tem calcanhares
e arestas.
ah,
na margem da vizinha ribeira cresce um salgueiro.
Renata Pimentel
Pernambuco - NE
Renata Pimentel é graduada em Letras, com Mestrado e Doutorado em Teoria Literária pela UFPE. Desde 2010 é professora de literatura na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Publicou Uma lavoura de insuspeitos frutos (ed. Annablumme, São Paulo, 2002); Copi: transgressão e escrita transformista (ed. Confraria do Vento, 2011); Da arte de untar besouros (poesia, ed. Confraria do Vento, 2012) e Denso e leve como o voo das árvores (poesia, ed. Confraria do Vento, 2015)

Poemas
cartilha primitiva
só sabe como nascem
os girassóis
quem ousa plantá-los
e mais ousa:
cuidá-los durante
todo o longo e exigente
percurso até a florada
só sabe o vero
canto dos pássaros
quem ousa recebê-los
no lar sem grades
sem gaiolas
e deles receber
o livre canto
só sabe do amor
quem faz laços
com felinos
plantas
flores
águas
e outras formas de pasto
(do livro Da arte de untar besouros, Ed. Confraria do Vento, 2012)
a criança que sou abraça o tempo
eu não quero veredito
eu não quero enfeite nem fita
nem embrulho de presente
quero tudo desnudo
quero teu lábio carnudo
quero tua mão na minha
não quero mais desacreditar
não quero mais pelejar
sozinha
quero ser mulher e menina pequenina
não quero receita
não quero estereótipo
quero vaso de louça
batom somente na tua boca
e salto somente em teu pé
usei sapatilha de ponta
dancei até quebrar o joelho
bebi um oceano de sal inteiro
até doerem as entranhas
cansei e descansei
de traições desenganos e partidas
agora quero acolhida
quero viagem de partilha
(do livro Denso e leve como o voo das árvores, Ed. Confraria do Vento, 2015)
post-it
às vezes é preciso
arrancar as raízes
para seguir íntegro
(do livro Denso e leve como o voo das árvores, Ed. Confraria do Vento, 2015)
das vulvas de que nascem as poetas
os figos são flores que crescem para dentro
; comê-los é contaminar-se da modéstia do que não se exibe
, mas também não se exime.
os figos não se curvam aos elogios de casaca
, não se rendem às facilidades de toalete plástica
, são orações mudas e implosões de sentidos
as vulvas de que nascem as poetas
não são um conjunto genital de partes externas
são figos
e híbridas searas
podem abrigar um corpo além
é gente que gera
é mulher que não espera
pode ter qualquer genitália
pênis vagina teta cotovelo língua dedo umbigo orelha dedo perna
as poetas inventam seus corpos e suas primaveras
(do livro inédito/em preparação A harmonia secreta do caos)
e a insanidade reina ruidosa
começou como o primeiro avesso de todos os sustos
- sem voz:
um sino estranho aos hábitos senis de existir
do que se supunha
fé
badalava tensa nota sustenida de advertência
[foram caindo corpos, um a um multiplicando-se e não eram pares, eram hordas.
/ todas as pretensões orgulhosas de sangue vendo o esfalfar-se em pedra]
quando o ar se faz raro
: efeito infecto
[seja em fato seja em saldo seja em álcool]
: líquidos e salivas e toques adensados
sirene e assimetrias
: morrer a cada minuto se faz mais sentença
/solitária escápula sem asas/
depende de como se acomode
- quem? Quantas quantos e quantEs?
[QUANTA]
hasta cuándo? hasta cuándo?
: acomodar coisas em lugares confiáveis
, como quem pega aquela mesma estrada de chão todo dia enquanto vai ao rio tomar abraço de água doce, colhendo umas frutas pelo caminho e ouvindo canto de passarim conduzindo a trilha,
é ascender em levitação de raiz de árvore antiga
, que voa nos braços-galhos-folhas-cabeleira de ser transtempo
tudo passa, vai passar, passará
passaremos isoladEs em corprisões
escorpiões atentes ao fim do dia
quando os timbus guincham alto sua algaravia
o que não é passado
não é o fim
dos tempos
não é o fim da alegria
mesmo nas raivas gritadas
pelas portas lacradas
: que a dor segue carpida
quando toca as barras das vestes pessoais
[é que não aprendemos a ser animais]
e no balcão dos negócios
maisvalidam-se os itens de primeira urgência
como papel de limpar as bundas
como lisoformes e retinas límpidas
: não aprendemos a ser menos
nem a tomar sozinhEs os cafés
que preparamos
enquanto aspiramos o pó dos corpos
destronadas as coroas
[o ar mais limpo rareia
impera em peste
feito quem sufoca
de tanto oxigênio]
não me abre teus lábios
/ repousa tua língua
......................................................silêncio
há cortes onde havia talos
e a insanidade reina ruidosa
: sanha de serumanos grunhindo
instalados em seus buracos
não haveremos de caminhar
estateladas estátuas de pedra
: quando abertas as cancelas
, esqueceremos a história anônima
e permaneceremos sem sermos fato
não, poeta, me abre teus lábios
MAS
/ repousa tua língua
teu ......................................................silêncio
ainda é mais sagrado
(no prelo a sair na coletânea intitulada O Poema se chama política, ação para o MTST/ PE)
Renata Santana
Pernambuco - NE
Renata Santana (Recife-PE) é escritora, recitadora, bibliotecária, jornalista e pesquisadora. Publicou os livros Eu me lembro e Na terceira margem do agora (ed. Castanha Mecânica). Também integra as antologias Abrigo (ed. Vacatussa), O poema se chama política (Impressões de Minas / Titivillus), Quem dera o sangue fosse só o da menstruação (ed. Urutau), entre outras. Organiza com a escritora Flávia Gomes o Sarau Eroticuzinho, um espetáculo de literatura erótica.
latitude: -8,0949109 / longitude: -34,9254047

Poemas
sobre coxas, falo.
sobre conchas, abro.
sobrecu
corto fora, tempero a galinha e boto no fogo.
---
antes
do amor dos primos
do professor de inglês
antes da máscara
da tiazinha
antes mesmo do pôster
no quarto
e do axé music
que desce até embaixo
antes, mais cedo que
os meninos de sunga
na aula de natação
antes de dezembro
beijo gaúcho no ônibus da excursão
antes da menina que tirou o biquíni
no banheiro
e disse
aqui, veste o meu
tão nua e cruel,
antes antes muito antes dela
e dos caras
derruba-parede
amasso de festa
troco revistas por filmes da band
antes, anos antes do xvideos:
o tesão irrepreensível
entre duas bonecas barbies.
zona erógena
é quando eros diz
aqui
é um bom lugar para ficar
então ele cava
e dentro
esconde um ouriço
mas nunca descreve
— aqui zona de eros —
pois é preciso procurar
no grande mapa nude.
fosse adulto
talvez escrevesse
emplacasse o mundo
ainda implantasse ponto biométrico
os ouriços
previsíveis
funcionários de repartição
não,
criança e brincalhão, eros
faz uma zona
sopra ouriços
e depois
apenas
diz
tá quente
tá frio.
fido dido
você degraus e digressões
eu drops and dress
você dor e discos dizendo
dez em cada dez pessoas
eu drops and drags
dançando dig dig dig ê
dizendo duvideodó.
---
o jeito como você
reinventa pratos com miojo
patenteando nomes
que depois esquecemos
me convence da salvação
você é um deus de plantão
no final do mês
o homem com o cardápio nas mãos
em paris
na porta da geladeira
não é maior do que você
ao seu lado atravessaria guerras
e resistiria, grata
como um tamagotchi.