Aline Cardoso
Paraíba - NE
Aline Cardoso (João Pessoa, 1991). Mulher negra, produtora de conteúdo digital, multiartista e mãe solo. É fundadora da Editora Triluna, licenciada em Letras e Mestra em Linguística pela UFPB. Organiza o Sarau Selváticas, a Sagaz Zine, e participou da fundação do Slam Parahyba. Autora de A proporção áurea do caos (Escaleras, 2019) & Harpia (Triluna,2020).
@linhanegra

Poemas
anatomia poética
poeta é ave de rapina,
caça a alma
das palavras
faz de si viveiro,
poleiro, ninho.
apesar de o coração
habitar a gaiola
das costelas,
o verbo é um pacto sanguíneo
libertário & libertino,
almas livres rompem grilhões
ansiando leitores famintos
apetecidos pela opulência
orgiográfica de sua poética.
leitura
sorver as palavras
direto da fonte,
decifrar
língua à língua
o relevo braile
das papilas.
vítreo
estilhaça teus silêncios
com poesia,
junta teus cacos
em mosaicos,
canaliza a verve
no resvalar da língua
em versos vítreos:
escreve.
rapinas, peçonhas, escamas e fogo
toda mulher é selvagem
ainda que tentem silenciá-la,
toda gente nasceu de um ventre
não somos submissas,
não somos reservatórios,
apoios, muletas ou colunas
nós somos a revolução,
criamos o mundo e
todo o poder de escolha é nosso
ainda que os homens
escrevam leis e contratos
que nos digam não à liberdade
somos o próprio fogo,
posto que purificamos,
criamos, aquecemos
com a mesma voracidade
também destruiremos
suas estruturas sórdidas
este poema é uma prece,
afiem as garras,
inoculem suas peçonhas
assumam suas rapinas,
lustrem suas escamas e
incendeiem tudo.
Nêmesis
o deus dormiu
quando você nasceu
apenas eu recolhi
o teu corpo de dentro de mim
sussurro
para que te lembres:
o amor é arraia,
todo desejo cego é arpão.
Amanda K.
Paraíba - NE
Amanda K. nasceu em fevereiro de 1985 na cidade de Cajazeiras. É advogada e foi vencedora do Concurso Nacional de Contos e Poesia que marcou os 60 anos do Correio das Artes, na categoria contos, com a obra Cogumelos nascem no telhado. Vinis descascando pelas bordas, lançado em 2018, foi seu livro de estreia na poesia. Atualmente é colunista do jornal A União.
latitude: -6,9810938 / longitude: -38,582695

Poemas
estico-me
nesse cabo de guerra
entre o êxtase
e a inércia
---
atravessamos a ponte
pra trás os relógios
as pressas pelo nada
talvez nem Oz arriscasse
um truque
onde tudo simplesmente é
---
nos dedos o incontrolável desejo
de percorrer teus vales
testa, sulcos
adentrar o lado oposto
invadir o campo magnético
traçar linhas, semicírculos
sem pressa
como o viajante de Kavafis
até que Ítaca se apresente
e fim.
---
medo
de um dia
de tanto apagar
a vida
ela se rasgue
---
enfim...
o rio desviou seu curso
o mar que arrebenta já não é o mesmo
mas as ondas...
continuam a bater forte
... e mais forte
arremessando
sem saber
do verde que resiste
nesse nascer e entardecer
de sóis
---
na radiola do meu avô
vejo a vida passar
em vinis
descascando
pelas bordas
---
insisto em cultivar
PACIÊNCIA
essa plantinha rasteira
que os bichos comem
quando estão empachados
---
dos passarinhos
que rondam a cabeça
botar na gaiola
do esquecimento.
Débora Gil Pantaleão
Paraíba - NE
Débora Gil Pantaleão (1989, João Pessoa/PB) é vegana, escritora, possui oito livros publicados, sendo quatro de poesia, um de contos, um romance e duas novelas. É editora na Escaleras, atuando também na área de Escrita Criativa através de oficinas e cursos de criação de histórias para a literatura e outras áreas. Além disso, é graduada, mestre e doutoranda em Letras, com foco em estudos literários.
latitude: -7,1134017 / longitude: -34,8886199

Poemas
vida de puta
minha vida está uma bagunça
há três pedaços de sabonete na saboneteira
me pergunto como isso é possível
na pia tem uma górda preta bem no ralo
há pó de incenso caído no chão perto da lixeira
é uma vida merda
há uma calcinha suja em cima da descarga
meus livros e apostilas estão empilhados
como se esperassem caixa
há dias não lavo os óculos
como ensinou minha falecida avó
alguns seres humanos querem trepar comigo
mas estou cansada
sou péssima em fazer sala
se paro de trabalhar quero a morte
a solidão dos motores que passam
na pista ao lado do meu prédio é insuportável
me pergunto como isso é possível
desejo morte para todos por pena
desejo vida para todos por pena
uma amiga me fala sobre compaixão
digo que sentimentos assim
destroem um eu lírico
na frente do palco todos me aplaudem de pé
uso salto 11,5
ninguém conhece meus segredos
Presságio
Presságio de que o mundo não vai acabar
De que o leite não vai derramar
E que ficaremos todos sãos e salvos
Dentro deste poema.
pontiaguda
sobre
não
achar
canto
na
vida
viver
sem
tecido
pássaro
lesbianidades
acolhidos
os
seios
enrijecem
em
línguas
farpas
mea
vulva
tua
vulva
echarpe
desmame
eu já não vivo mais em morte
embora ainda me doa o experimento
nestas novas formas que meu corpo cria
sobreviver de repente virou um tanto fácil
um preâmbulo que antecipa a vida
inalcançável
agora já um tanto fluida
já um tanto flácidas as rugas
dentro da efemeridade
que amo e que detesto
eu respiro o outro
eu respiro os outros
e suas cavernas
na escuridão tateio seios
já não há cidade
que sustente minhas pressas
Eliza Araújo
Paraíba - NE
Eliza Araújo é professora e escritora. Seu primeiro livro de poemas foi Segredo de Estado de Espírito (Editora LiteraCidade, 2014), o segundo, Lusco-fusco (Editora Escaleras, 2018) e o terceiro, não-foto de momento humano (Editora Escaleras, 2021). É doutora em Letras com foco em literatura afro-brasileira e afro-americana pela Universidade Federal da Paraíba.

Poemas
[lembra: o mar]
não nos achamos nos idos dos anos 90
vimos os anos longe, mas debaixo do mesmo sol
as músicas marcaram momentos
como cravos escavam madeiras
mudar as formas foi te ter nos círculos
e na memória afetivo-olfativa
da infância que agora chamo afã
os locutores de rádio
matavam nossas cuidadosas listas de música nas K7
com palavras descartáveis interrompendo o fade out das músicas –
eu vejo teu olhos nas fotos
e te amo porque me encontro
na tua desmedida maneira de amar os seus
voltar às origens
e chorar com canções
você me viu navegar com amores que foram minha pele
não os compreendo agora, mas foram-se como os anos
e restou um corpo mudado
menos cabelos na cabeça
e um torso que segura na boca do estômago as emoções
te encontrar te reencontrar te encontrar
é tipo ir de barco a Picãozinho
meter a cabeça entre os peixes e saber como respirar
é estranho e divino
que nossas saudades deságuem no mesmo lugar.
naftalina doce
na terceira infância minha brincança era silêncio, não dança
os livros livravam dos gritos dissonantes da casa
goiabas vermelhas verdes duras eram razão de subir o pé
entre infância e afã caminho árido
pegar pegar regra do pega pega
pular pular regra do pula corda
o primeiro amor varanda
sempre teve dedos dedos grossos pequenas unhas roídas
cutículas finas sobrancelhas unas
pegar pegar era um lúdico encostar nas suas costas
dormir entre lençóis compartilhados segredada maneira
de sentir o cheiro dos seus cabelos
nossas bocas se conheceram até que não –
os estilhaços do meu coração recolho ainda
e olho o arranjo:
espelho turvo que é viver e reinventar os pedaços.
berço das avós
te dei aquela canção de Nanã pra quando precisasse recorrer a ela
as mãos cálidas que desenham o sol na terra
podem desenhar linhas no asfalto arabescos no ar
viajar é criar rotas sobre rodas ou pés
e
nos pontos que embalam
segredos podem ser abertos ponta por ponta
como quem desencobre pacote quem
desentuca lençol ou rodopia e dança
Nanã velha e criança
dança ao som de naná
e as memórias que mateus revira
ecoam com as pessoas em mim que comungam
quando vieram
os navios mais que cortaram o mar errantes:
costuraram na espuma histórias que de tempos
em tempos nos levantaram
altos como os povos antes –
nas memórias desde a lama
nanã é mistério em gente
que mais que sabe, sente.
pureza
pelo menos duas vezes flagrei um sorriso de vovó
desses bobos, que se dá na ausência dos outros
nesse dia descascava batatas pro purê do almoço
(isso foi antes de eu saber que descascar batatas fazia as mulheres escritoras terem que parar de escrever no século dezenove)
isto é, as mulheres escritoras brancas de que sei
isso e os filhos
já
morrison escrevia com os filhos e suas urgências de infância na sala
angelou num quarto de hotel sem quadros, triste como distinta cantora de blues
carolina não sei, mas imagino que entre panelas sem tampa machucadas pelo socador
lucinda sonhei, que entre os primeiros feixes de luz da manhã e os variados cheiros do amor
mas o fato é que vovó sorriu em silêncio
talvez uma memória lhe ocorreu e eu soube ali que éramos de breve parecença
o sorriso durou tempo o suficiente de eu fotografá-lo com meus grandes olhos infantis e saber
que guardaria a polaroid numa gaveta da memória a sete chaves
para abri-la em sobressalto
agora
agora que nove anos que faz que ela se foi
até vovó sorria, eu penso
até mesmo ela achava um pouco de graça na vida
e não importa o quanto estivemos distantes em cômodos opostos
como se estivéssemos em opostos hemisférios:
foi ela que me abraçou selando o fim da minha primeira infância
e me chamou de pássaro
até hoje sei que estou de passagem disfarçada nesse corpo humano
e embora macia seja esta pele
ela é o envelope das penas
de um beija flor azul.
sob natural
você fez tua matéria de gotas do atlântico
cruzar as ruas foi sempre caminhar sobre águas
rastros turvos de sem nome emoção
tem por magia a língua portuguesa
onde linhagens se perderam nas memórias distorcidas nos cânticos
diluídas nas fagulhas de papéis ao fogo quando nomes já haviam virado números
não foi possível negar os rios
desaparecer os navios da costa
colorir mais claro a pele das vindouras gerações
ter os pés no chão é bem dizer pertencer ao país de corpo inteiro
até que não mais nasçam crianças
que podem soltar as pipas, mas não os passos livres.
Jennifer Trajano
Paraíba - NE
Jennifer Trajano (1996) é paraibana, natural de João Pessoa, professora de língua portuguesa, revisora textual e autora do livro de poemas Latíbulos (Editora Escaleras, 2019). Já publicou em algumas antologias poéticas, a exemplo de Um girassol nos teus cabelos: poemas para Marielle Franco (2018) e Cult Antologia Poética #3: poemas para fazer o luto desse tempo (2020).
latitude: -7,114345 / longitude: -34,8825587

Poemas
infinito
eras
de areia
marítima
a tua
superfície
de sal e
ternura
os teus
olhos:
abismos
e os
meus
abismados
a olhar
a
cor de
açude
banhando
o
negro
cercado
senti
focinho
de peixe
nadando
no meio de
meu corpo:
um tubarão
atravessa
as pedras
das pernas
e faz ciclo
no ato
de tapar
as guelras
é
peixe
que se
afoga
e
afaga
soltando
lodo
na
textura
dura
fazendo
escorrer
leite
em leito
eras de
estrela a
tua boca
via láctea
refletida
pelos
satélites
e eu
vestida
pela
nudez
descobri
a pele do
universo
construção
nos olhos da minha mente
há um basculante quebra
-do.
: criei lua e nuvem
misteriando sua beleza.
na beleza observo
a infinitude celeste.
no meio posso ver mitologias
e (ré)toco com os (dós)pés toda arquitetura.
fora há vidro escurecido
que impede meu horizonte.
: nele esclareço utopias.
nos pés da minha mente
há um arquiteto mal pago.
: ele quebra enigmas vendados
[de concreto].
na cabeça do arquiteto existe
um céu
de cachos labirínticos.
sol da lua projetado em cada canto
solu ça: o vidro quebrado
passou a vidrar seu coração.
dentro dele há espelhos anoitecidos.
o arquiteto, ah...
é o abrigo de meu peito.
o mar que ar aqui é revestido de pulmões.
dentro dum
pulmão um
poeta.
no peixe que o habita, uma espinha:
a poesia
cicatriz
uma escrava chora no tronco:
chibatada utópica do regresso
grosso, morto, oco, tão eco
como o grito em alvoroço
do tigre que não cessa
no fundo do poço
Lua Lacerda
Paraíba - NE
Lua Lacerda Nasceu em Cajazeiras (PB) e mora em João Pessoa (PB), onde faz graduação em Jornalismo pela UFPB. Seu primeiro livro de poesia “redemunho”, foi publicado em 2020 pela editora UFPB.
latitude: -6,7833332 / longitude: -38,5

Poemas
velhos trópicos de ceci
todas las canciones de amor
entre duas pessoas são pequenas
nelas não cabem o sonho
não cabe a floresta
amazônica
me apaixonei
por um homem e o escrevi
una cancion de amor
depois, me apaixonei
por sua esposa
e os cômodos da casa
aumentaram as melodias
então era isso, pensei, a dança
rio purus, xingu e iça
quando chegamos na fronteira
era escampado e acampamos
onde os rios se encontram
na alegria de peri
mi lengua bailando
na tua boca, tua língua
en la patria de mi cuerpo
de nossos beijos diluvianos
jorra uma nova canção
sin banderas ni miedos
nacionales
somos todos esposas todas maridos
rio tapajós, rio japurá
---
quando perguntei
onde os teus olhos acham
poesia
você respondeu
que os livros na estante
são suas passagens aéreas
para o paraíso
então pensei
como são frágeis os poemas
que as traças podem
cegar
para raios
como os relâmpagos caem
nas montanhas do sertão
assim tua voz desaba
em mim
energia que acende
as cidades grandes
incontrolável saber
da terra
singelo manifesto
de luz
estica-se imenso som
em estrondosa felicidade
gosto que fales, muito
gosto que rias tão alto
capaz de acordar
a estrela Rigel
no ponto mais
alto do céu
velejas nos segredos
que as nossas mães
antigas constelações
guardam
és expansiva
porque dentro de ti
cabem os outros
que adormecem
na tranquilidade
se suas águas
dia santo
quando toco o rosto
preguiçoso desta manhã
torno-me água ou pedra
imóvel na minha arrogante
beleza
há tempos desejo
uma manhã assim
em que o silêncio limpa
o batom vermelho
da minha boca seca
e destrona a vaidade
de ontem à noite
sem lamentar
as nódoas que o amor
deixou em minha pele
uma manhã
em que o silêncio escala
a janela do meu quarto
me encontra nua
e me acha bela
tantas coisas boas podem
nascer desta manhã
preciso que dure
para gestá-las
e pari-las
até me dar conta
que este sol parado
em plena órbita
vai custar me tomar
outra vez
e sorrateiro se esvai
do esconderijo dentro
de mim - onde não há
nenhum satélite
esta manhã
deitou-se comigo
cheia de promessas
de acordos mundiais
para alcançarmos
a paz de espírito
mas mal acordou
já pôs a roupa e partiu
deixando-me na cama
humana em pleno
século xxi
agora estou insone
no leito da morte
peço-lhes volte, amante
e faças a guerra
que tornará a terra
o teu signo
temperatura basal
às vezes minha amiga e eu
gostamos de tocar siririca
juntas. nós ficamos
lado a lado sem tocar uma
na outra, apenas gemendo alto
e nos olhando direto nos olhos
até o calor explodir e derreter
os nossos dedos. quando
terminamos, sempre levantamos
e preparamos café para juntas
assistirmos a água borbulhando
— como nossas bucetas úmidas
por baixo dos vestidos —
fervendo como se tivesse
nos visto
Luísa Gadelha
Paraíba - NE
Luísa Gadelha é graduada em Letras, mestra em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba e doutoranda em Estudos Literários e Feministas pela Universidade do Porto. Servidora da UFPB, também escreve sobre literatura e é editora do site de poesia Zona da palavra. Tem poemas publicados em revistas brasileiras e portuguesas.
latitude: -6,964668 / longitude: -34,8367503

Poemas
as madrugadas insones servem para guardar as roupas secas penduradas no varal lavar a louça acumulada do dia limpar a caixinha do gato - eventualmente acarinhá-lo um pouco ouvir o silêncio mudo que ronda a vizinhança alheia e adormecida e um grilinho aqui, outro acolá enquanto pensamos em todas as (des)esperanças e desesperos e esperas da bolha do mundo
---
incômodo com as minhas pestanas a minha avó, natural de areia, foi tida por muitos por oriental é que ela tem olhos pequenos como as gotinhas d’água que desenhamos na infância ou aquelas bolinhas de gude que costumávamos atirar — nunca aprendi este jogo os meus olhos já nem são puxados à moda asiática apenas diminutos e, onde se deveriam contemplar os cílios, apenas uns poucos fios, salpicados, sem tamanho nem volume – o que impede e ridiculariza qualquer tentativa de maquiagem este detalhe, contudo, não é o que mais me incomoda afinal nunca fui grande entusiasta de fantasias (exceto os devaneios oníricos) o embaraçoso é: será o meu olhar capaz de transmitir todo o sentimento do mundo?
---
ansiedade é a gente surrupiar toda a sensatez sugar o ceticismo se sabatinar, auto-sabotar serpentear por futuros absurdos e quem sabe possíveis, mas improváveis. suportar sozinha as situações sonhadas de desalento é desesperar no abismo insegurar nas possibilidades se saciar na insanidade.
---
O período mais duro Mais trôpego, mais triste, mais traste Foi aquele inverno nos jardins De Sophia de Mello Breyner Andresen Em que esqueci os instantes que vivi – e os que não vivi – Junto ao mar. O Porto era então todo cinza Todo cinzas Gélido, úmido, sufocante Tinha mesmo sido Um lar? E mesmo nos jardins De Sophia de Mello Breyner Andresen A trégua era só para um suspiro Um soluço, um sussurro Uma contemplação das roseiras já murchas Que um dia pertenceram a Sophia – agora já éramos íntimas, separadas apenas pelo tempo – Sophia que um dia disse: “O Porto é o lugar onde para mim começam todas as maravilhas e todas as angústias.”
---
animula vagula blandula (nos versos do imperador adriano): essa alminha errante completa hoje trinta e três voltas ao redor do sol (me perdoem os geocêntricos) trinta e três: a idade de cristo (me perdoem os céticos)
quatro, quase cinco renovações totais
de todas as células do meu corpo
(me perdoem os criacionistas)
33 primaveras de mentira,
(aliás, 30, porque 3 passei fora do país)
(e porque em joão pessoa não há estações do ano)
e, no entanto,
me pergunto o que resta daquela menina
que brincava de barbies
neste corpo quase irreconhecível
naquela menina que
teve uma infância
ordinária
trivial
e vulgar
como quase todas as outras meninas
em todos os lugares
e todas as épocas
me pergunto o que resta
de mim
neste estrangeiro
corpo
que deixa de responder,
lentamente,
aos meus comandos
que esbranquiça as poucas madeixas
que não caíram
que escurece o entorno dos olhos
contra minhas ordens de repouso e trégua
que transforma alguns órgãos
em pequenos invólucros
de sentimentos
uma carcaça carregando
frágeis saquinhos de
amores, esperança, mágoas
um pouquinho de inveja,
algumas frustrações e
borboletas, balões, docinhos açucarados
o saquinho do entusiasmo
infla, seca e retoma
num eterno ciclo
em sintonia com a respiração,
elevando os seus juízos e inventos
o coração, esse órgão preferido dos apaixonados,
não sei que assombros carrega
sei apenas que, dentro deste saquinho em particular
carrego vários outros saquinhos
daquelas e daqueles que passaram dentro mim
citando cummings:
i carry your heart with me
(i carry it with my heart)
Marília Valengo
Paraíba - NE
Marília Valengo é de João Pessoa, capital da Paraíba, mas mora há 5 anos na cidade de New York, Estados Unidos. Costuma dizer que tem um pé no Cariri e outro no mar. É redatora, estrategista de conteúdo e ultimamente, nômade. Publicou poemas nas versões digital e impressa da Revista Subversa e lançou seu primeiro livro de poesia, Grito em praça vazia, pela Editora 7 Letras em Outubro de 2020.
latitude: -7,3911147 / longitude: -36,532597

Poemas
bilhete de despedida
queria que você visse
a minha coleção de frases
queria que você visse
o exato momento que o sol
lança um feixe de luz
sobre a porta da cozinha
de manhã muito cedo
que você parasse
alguns minutos
para ver o brinco de moça
florido no quintal
a força do amarelo
os pequenos animais
que aparecem por causa dele
planejei te mostrar
o caminho que leva
para a árvore mais antiga da redondeza
e sonhei com o momento
em que iríamos sentar para assistir
aos bichos voltando para o curral
perto do sol se pôr
quis te levar na casa abandonada
quis dividir com você todos os barulhos
por trás do maior silêncio da terra
queria que você entendesse
que não precisa mergulhar mil léguas submarinas
basta perceber que flutuar é mais fácil
do que se imagina.
então?
não faz a menor diferença
já que estamos sob o mesmo
sol
não pode haver distinção
porque nossos suores são compostos
damesmaquímica
também não existe distância maior,
a m o r
quando o que está
entre
os nossos corpos
é o mesmo
independente do ponto de vista
é o mar quem está agitado, não eu.
como as mulheres que conheço
quero descanso
e saber
com quem deixaremos os nossos filhos?
heróis também jogam golf
fico imaginando que todos se convidam
por bilhetes deixados embaixo
de copos que serão recolhidos
por garçons asseados em um salão
esterilizado que é para ninguém perceber
as nuances do clubismo e também de
outras facetas mais vulgares
do despeito
que faz com que em outros lares
inventem novas maneiras
de esconder tais bilhetes
nos buracos de muros rajados de balas
que serão recolhidos por mensageiros-passos-firmes
que é para ninguém perceber as nuances vulgares
do oportunismo
e enquanto nos desesperamos
com periódicos e cartas que não chegam
mãos se apertam
documentos são assinados
votos são recolhidos
e um sentimento de paz e democracia invade a todos
quando na verdade só há dois buracos onde podemos enfiar nossa esperança
e que tanto faz se dentro do gramado
ou dentro da parede
é a sofreguidão da palavra
relevância que nos assombrará no final.
Natália Luna
Paraíba - NE
Natália Luna é poeta, mulher, nordestina e é bacharela em Filosofia.

Poemas
Corte
Sobre os espaços reticentes da comunicação
Que não são preenchidos nos muros pelas cidades
Só lamento que – palavra silêncio –
Vou cortar
Vou cortar o corte que me corta
Vou matá-lo
Com a adaga do silêncio
Vou deixar ressoar
do lado de lá da experiência
Os ocos que já não mais dão
Nem pra pé de côco.
Preenchendo os espaços vazios
Que deixam sobras
E os lugares estéreis com sombras
Que mais nada evocam.
E no fio fino da corda
Quando bamba e me corta
o tempo que rompe
No tempo que me balança
No relevo do entredicto
A contra-resposta.
Gozo fóssil
Por um fio
tudo que me prende
o laço
Por um fio
elã vital é o instante que precede
o gozo:
fino fosso,
esboço do gosto
de antever o rosto, a fissura e o frenesi
antes de tudo e de qualquer coisa
Sem esforço, fazendo morada do corpo
no indizível
revelando couraça
com as camadas expostas
sob um sol escaldante
de março
de primeira e última instância
pele sobre pele
e que a crueza nos vele
no amor e na destreza
ao menos
um pouso breve.
No além mar
Ele me mina, ele Ele
me ultrapassa no seu lusco fusco, holofote
Aceso da poesia.
Acesso e quanto excesso! Excedo quando escrevo
Sobre o vagueio
Ele me excede o aceso no acesso.
Ele quem
Quem do outro lado ao avesso
Se importaria, eu ou ele
Por tanto fogo aceso, livro aberto e palavra
Na migalha dos dedos
Do verso ou o espelho?
Palavra no colo
Livro ainda não escrito
Histórias nunca antes vistas
Luz altaneira acesa
Na distância mais longínqua
Que desperta a curió
Na beira da madrugada
E de que adiantaria a brevidade de uma planta
Sem um pouso dos pés?
Dentes
Tudo se molha num passar de fios com a ponta no pente
E a água que é mais astuta que a gente:
inundando dos pés ao pescoço
como se sentir fosse um caso
de só ir sentindo.
Como a gente,
o sentir na água
quando põe os pés
é caso sem meia-volta
tampouco se mede o tempo na água com a cronometragem
do esquecimento pelo fio do fim.
Veraneio
Esse si sem mim
Não existe
Esse em mim existe
Não em si
Mas com tudo a minha volta
Um bocejo secular
De tudo que veio antes
E que não está por trás da porta
Mas chega até mim feito maresia e sargaço amontoado
De tudo que um dia fizeram de mim
abortando os anos de vida
E me dando de presente
uma figa e uma liga
de esperança
Filtro de ecos e enganos
Para energia vital alguma se esgotar
E para que tudo não passe
De um plano de fuga
sem roteiro para morte alguma me alcançar.
Sobre o sono secular
De herança ganhei esse peso antes de dormir
Errática na vigília
Na casa dos sonhos para me convencer do palpável
Antes que se debande ao inefável
Medo com o futuro, de desprender essas amarras
E depois florir, sem ti
O que ele queria ou pretendia
Se viu num instante de sono uma recusa final?
Derradeira
Mas ele não deveria se cumprir de alvenaria
Antes do sol do meio-dia, como um pássaro leve
Se levantando ainda
Com dez passos na des
mesura.
Nymeria Ronan
Paraíba - NE
Nascida em Campina Grande, tem 28 anos, é poeta, estudante de Letras Espanhol e escreve desde a infância. Mulher trans, lançou em 2020 seu primeiro livro, Alma Grávida (Editora Escaleras).

Poemas
Hora de agora nos pensando na borboleta como parque aquático levitador
Tu levita como bem entende
Ver a figura do karma numa agulha prestes a ...
Enforca o namorado ate desmaiar
Toma leite devagarinho
Arruma pra próxima lua cheia uma dor para ir ate a lua
Convidar lilith pros embalos de sábado à noite
Hora do antes: prazer já existi
Me esqueça ou ou adore
Chegou o momento
Quando chega
Aperta
Sobe
Prende
Gargareja
É tua oh
É tua pra depois ser escrita como una
Toda dor é um origami do causador ne ou nao e eu sei sei la
Chega mais
É verão os chatos gostam dele
Outros muitos chatos não acariciam a pegadinha da mamá morte no outono
Se for pra namorar
Será o tempo inteiro nua
Marcas da cama
Marcas de estrias
Marcas do peso corporal
Marcas da transa
Marcas invocação
Marcas da divisa entre esta nas estrelas e entre ser rede no mar
Nua o tempo todinho
Marcas minhas numa depressão ainda não escrita
A poesia mente oh carai
---
Presta bem atenção em
Tá lá bem na nossa frente
Nosso encontro imitando
Passou maquiagem
Decorou nossa competição pelo último pedaço de qualquer torta..
Foi lá no centro espírita receber o passe falaram que estava pesada
Igualzinho a ti
Atenta a memória infestada de imaginação
no momento da meditação uma flor de lótus apareceu
ela sangrava
ela desmontava uma borboleta acima da minha cabeça
é todo o perigo de ser
é toda aquela jaula de não ser e fingir ser uma boneca de carne ossos respirações na carne,língua,saliva,respiração,ossos,cérebro
arritmia cardíaca
doenças da velhice
energias densas
narcisismo intensificado
fotos na parede..todos estão mortos
obsessores longa da vista
presta atenção
lacrimei muito esses dias
você brinca; precisamos conversar
a conversa não acontece
você guarda essa conversa como um guardião na porta do labirinto
que só se mexe pra pedir a garotinha um pouco do seu sorvete
( por que essa garotinha nunca cresce ?)
meu anjo da guarda ..meu animal totem ontem miaram do telhado
perguntei e levei miados de volta
prestei atenção
assumi que se tivesse arco e flechas atiraria em mim mesma
andaria com elas presas a mim
tomo café..ele mais me seca do que sacia
prestamos bastante atenção
os caras não nos deixam em paz
assobios olhares de nojo
lacrimei muito esses dias
antes socorro na esperança
antes o agora podia ir pro enforcamento
nunca sonhei com ventos
Os sonhos de vocês tem ventania ?
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essa encarnação de solidão te bota aos pés de qualquer ser que cria nuvens de chuva envolta de si mesmo
oremos excitadas
aquela freira jovem te chamou atenção
no confessionário
atrás dos santos
no momento que se arrependem dos sexos
leite azedou toma assim mesmo
achou mosca na manteiga
passa no pão assim mesmo
come
quase vomita
o bicho que o estômago é quase sai para fora
alguém liga
é número de fraude
você estava esperando um espírito
entidade
até mesmo alguém fingindo ser qualquer coisa
decepcionada
tenta desligar-se vendo receitas de doces que nunca vai tentar fazer
mesmo que digam; nunca é uma palavra forte
você sabe o quão forte é para nunca exercer o nunca
essa encarnação de solidão tira as cartas de tarot
fala da sua dependência
que suas raízes nascem numa forma de abraço bem bem apertado
quase estrangulando o espaço vazio
alguém vai entrar nesse espaço
comer geleia
dá chutes
deixar pegadas
defecar
cuspir
montar altares pro passado
e por fim
sem ser fim
pois pode continuar
queimará tu
nasce o anticristo das chamas roçando a bunda te tendo estilhaços
essa encarnação de solidão afoga-se propositalmente numa piscina pública idem praia esperando o salva vidas vir em câmera lenta ao resgate
é nossas expectativas hollywoodianas nada nossas te acalma em
Raquel Medeiros
Paraíba - NE
Raquel Medeiros é mulher paraibana residente em Olinda. Talvez seja poeta. Em 2021 datilografou, costurou e lançou sua primeira publicação independente, máquina, entre rede, cachorras e jibóias.
latitude: -7,1182104 / longitude: -34,9735134

Poemas
lavanda
eu sei, sei que foi-se. foda-se.
não posso consertar o vaso do tempo, te pagar
um tratamento naquele filme do gondry.
já tomou cachaça ouvindo uma daquelas músicas
bem cafonas, de filme dos anos 80?
vem um trator que passa por cima de frente e
não contente, também passa de ré.
a cachaça e a música cafona. o trator.
a pessoa canta se partindo
I wanna know what love is
I want you to show me
não tem sentido. nada tem.
outra noite sonhei a gente numa praia
tu passando uns galhos de lavanda nas minhas costas
minha nudez de um pouco mais de um metro e meio de altura
horrorizava as senhoras que cobriam os olhos
das crianças recém caídas de montes de vênus
mais preocupadas com as ondas e suas piscinas
de um pouco mais de um metro de diâmetro
planta lavanda no meu peito
eu te pedia
e acordei.
---
maria flamba
na cachaça melhora
e piora
como em qualquer
substância que tente
remediar.
o poder de algumas palavras
toda vez que eles trazem a palavra
estupro
uma mulher se contorce de dor
uma mulher implora que parem
uma mulher sufoca em silêncio
uma mulher grita de pavor
uma mulher soluça de medo
uma mulher cai fraca sobre as próprias pernas
uma mulher se lava com tanta força que fere
uma mulher se fere com tanta força que sangra
uma mulher não dorme
uma mulher não acorda
uma mulher agoniza
uma mulher morre
toda vez que eles ofertam a palavra
paz
nada acontece pois
não praticam.
---
os ancestrais na montanha
pela certeza do lugar que ocupam
nos pés, um aviso
as pedras pressionadas
em volta do fogo
se roçam se estranham
se partem
na água se bebe e mergulha
se afoga do alto
se abisma
no coração da terra
sopra a dança que se anuncia
movimento ascendente
em cada uma das folhas das minhas
costelas
será que o tronco aguenta
aquela ventania no olho
do cavalo que levanta as patas dianteiras
nas firmes raízes do ventre do mundo?
os ancestrais na lua cheia
uivam onde a alma escuta
o umbigo é um vale
todo bicho é um ímã.
---
mas quem se importa com poesia
no preço que a gasolina está
pra que serve alguma rima ou remo
se maria mal consegue
se equilibrar
na terra instável do ônibus sacode
vai e volta e nem sabe como voltar e ir
no outro dia o mesmo café preto
no oco do peito cansado da cabeça cheia
quem realmente se importa, maria?
de que adianta a poesia?
acabou o gás.
Tassyla Queiroga
Paraíba - NE
Poeta criada no sertão. Viajante inquieta. Dividida entre Literatura e Direito, com poemas publicados nas Revistas Garupa, Gueto, Diversos Afins e Ruído Manifesto. O primeiro livro de poemas se chama Sargaço, e foi publicado em 2019 pela Edições Macondo.
latitude: -6,761838 / longitude: -38,2326799

Poemas
azul
toda solidão é um domingo de tarde
sem vontade de recomeço
uma xícara vazia
em noite de insônia
que dança madrugada adentro
a lama depois da chuva
ou a criança quieta
no quintal atrás de casa
onde a árvore tem galhos secos
e nenhum pássaro repousa.
Quem pode dizer o que um homem é?
no primeiro mês da guerra civil espanhola
mataram logo García Lorca
na Andaluzia
morrer feito poeta abrindo portas
pelo prazer de poder
abri-las
nesses dias de guerra - que são todos
é necessário morrer mesmo
de costas
ou esperar com desejo pelo exílio
que é morte ainda
mas pouca
guardar boca, ouvidos, olhos, cílios
pra melhores cenários
fingir o susto
morrer como o romanceiro cigano
numa estrada sem futuro
e sentir alívio
umbigo do mundo
tomar com os próprios punhos
as rédeas,
como fazem os deuses da natureza.
graças aos elementos de força,
os templos do império inca
destruídos pelos católicos
resistem em ruínas de pedras.
não entendo o idioma quéchua,
mas acredito em Viracocha
Inti, Mamaquilla, Pachamama
e sigo em silêncio subindo montanhas
pra ver o sol nascer pelas brechas.
ponte
a angústia que sinto no inverno
veio do africano com banzo
sozinho no engenho
do lado errado do Atlântico
a nostalgia invade a chuva
mal chego na ponte
em Vila Nova de Gaia
já quero voltar pro Porto
cruzar o rio Douro é mudar de cidade
Portugal colonizou no meu peito
essa herança de sentir saudade
vontade de ir embora
sem nem saber pra onde
fronteira
atravessei a nado o oceano
com sargaço enroscado nas pernas
uma rede de pesca enrolada nos braços
pra desenhar no teu espinhaço
com a ponta da minha língua
uma declaração de suor e sal
meu bem, tanta água no caminho
e nós com essa sede de sertão