Antonia Muniz
Pará - N
Artista, arte-educadora e cientista social. Desenvolve sua poética a partir da palavra, da fotografia e do bordado. Se prepara para publicar o livro Abraço sua Crina, pela Editora Impressões de Minas.
latitude: -1,277363 / longitude: -47,923245

Poemas
vovó
Há tantos caminhos possíveis para entrar na vovó pelo poema
embora desejasse escrever nada
pois estaria muito ocupada dormindo com ela
sob sua colcha estampada de onça
cheirando seu couro cabeludo
deslizando meus dedos em sua pelugem.
Há tantos caminhos possíveis para entrar na vovó pelo poema
mas nenhum ônibus ou avião para me levar a sua casa
e me fazer pousar em seu quintal desenterrando a macaxeira
com ela me espiando enquanto simula puxar a corda
que antes servia para apanhar a água do poço
mas que agora serve para fortalecer os músculos
que se soltaram com a morte de seu filho, Amadeu.
Um mar de desatou nos olhos da vovó
o mesmo mar que encontro agora nos meus
Bença, vovó!
qual a receita a senhora me daria para afinar o sangue dessa saudade?
O rio que lhe pariu agora lhe tem
Itaqui; amolando meu coração
para o segredo de lhe saber presente em sonhos, linhas, botões e miçangas
costuras
que encontro desenterrando o mocambo de outrora
sozinha lembrando que no último sonho que me contastes
estavas lavando duas redes para dois dos trezes filhos.
A morte com seu passo curto ainda que ligeiro
me pôs atrasada e agora choro nos aeroportos
que não m consolam
as propagandas não se importam com meu lamento
os dispositivos móveis não enxergam minhas lágrimas
e os avisos de mantenha distância moem ainda mais meu corpo.
Viverei um pouco mais franzina sem suas histórias, vovó.
Sem sua meiguice de pulo de rio
Seu jeito faceiro
Sua forma de repetir palavras que não saberia pronunciar sozinha
Sem teus olhos umedecidos a cada nascimento de netas e bisnetas
Cada chegada ou partida de tuas filhas e filhos
Sem teu baião-de-dois
Teu pedido por caranguejo no almoço
Tua capacidade para fazer amigos
E saber morar em todas as casas que te oferecem
Tua forma de suportar a friagem que te afetam os ossos
Tua paz medonha risonha silenciosa
De chama vela terço oração a Maria
Tu és minha Maria, minha rocha, meu magma.
A reverência ao Tempo e aos ancestrais que teus filhos parecem não lembrar.
livro
Distraidamente risco o livro emprestado: abrigo minha presença entre as letras cujo poema é uma despedida.
amigos
Desço do táxi com a lucidez dos cimentos. São três horas da manhã. A vila descansa sob as lâmpadas velhas e queimadas. O beco está em mim. Tem um senhor sentado em frente a sua casa e a noite parece pesar sobre seu corpo. Ele acena. Lembro que meus amigos ficaram no bar e que nenhuma bebida acredita mais neles e que sua ressaca é o passado. Meus amigos não sabem, mas sempre quando preparo as chaves para entrar em casa e tenho a súbita sensação de tê-las perdido, lembro deles.
rosto
No teu rosto
o endereço
a lâmina do tempo.
Ventos tateiam
e nunca te devolvem os dias embrulhados
te sobram latidos neste teu quintal
rouca voz do tempo
que cavalga em nossos ouvidos a maré cheia
sem que adormeça o relógio
o líquido que agulha.
Brenda Taketa
Pará - N
Brenda Taketa é jornalista formada pela Universidade Federal do Pará, onde também cursou o mestrado e o doutorado pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos. Entre outras intersecções, tem interesse nas que envolvem as ciências, a comunicação e a literatura. Publicou o texto estrada vermelha na coletânea Trama das Águas, editada pela Monomito com 50 escritoras que nasceram, se relacionam ou residem no Pará.
@brendataketa

Poemas
a haste do senhor pinheiro
cortaram o senhor pinheiro ao meio. sem aviso prévio, sem explicação para o ato brutal de lhe amputarem uma parte como se nada fosse. de lhe extirparem um pedaço que sabe-se deus o quanto custou a crescer, a se impor altiva aos passantes, confiante perante as janelas. nenhuma palavra foi capaz de dizer ou confortar a dor de lhe cortarem ao meio, por quase um ano a parte faltante ficou ali exposta aos olhos de quem quisesse ver.
ontem, qual a minha surpresa, ao me demorar na janela, a fitá-lo durante a chuva que contradizia o calor abafado de dentro com uma brisa fresca e revigorante de fora:
ele foi lá e cresceu de novo.
[digam o que disserem, digam como quiserem mas a vida, meus senhores e senhoras, independe das nossas disposições]
goiabeira em dia de domingo
em algum ponto
naquela estrada
encantados sorriam
enquanto
as plantas
amanheciam
douradas
tudo parecia domingo
fogo que pisca
sonhei uma frase plasticamente bonita e a repeti durante todo o sono mas a esqueci tão logo despertei por ser visualmente simpática mas não fazer sentido. sonhei como quem escreve algo sonoramente agradável numa lousa e esqueci como quem ignora o que ouve, como quem apaga sem ler, como quem exorciza sem oração. quando a tarde caiu espiei comprido as luzes piscarem cores miúdas no pinheiro da passagem como quem hipnotiza com fogueira trepidando galhos em brasas. mergulhado no cinza saturado o pinheiro mais parecia a frase muda na lousa de mais um sonho esquecido e lembrado depois da leitura de um poema a dizer que com o fogo que arde não se brinca. apaguei a imagem porque se com o fogo não se brinca o que não se ririam os poetas ao dizer dos piscas. esqueci a frase como quem engole choro, exorciza imagem, maldiz e esquece um amor.
para Kayo, amigo-abraço-choro-risada
eu rio
essa força
presa
(re)presa(da)
peito adentro
rompe barragens
deságua
em choro-cachoeira
a mover pedras
transforma o turvo em
água doce e fresca
que me devolve o riso
amanhã
[anotação pueril como uma manhã triste]
o tempo que leva para mastigar e engolir o pão é o mesmo que a afasta de quem um dia foi, arranca quem se reconheceu dos instantes imagens imaginados como intermináveis. "a gente se promete cada coisa", ria-se, considerando que os instantes devem ser mesmo atos miseravelmente falhos de tão falíveis. como toda promessa. como o pouco demais que as versões de cada um alcançam ser.
quem saberia dizer se abraços seriam cumprimentos de quem chega para ficar ou parte de vez. "partidos e aos pedaços estamos todos nós", silenciou, sorvendo um pouco mais o café esfriado pela demora e talvez a demora seja mesmo o tempo que se leva para fazer alguma coisa quando faltam motivos. - "é possível ficar, sentir-se perto de alguém sem encanto?", inquiriu-se, revisão em pensamento daquelas imagens sépias, antes de apanhar algo de si deixado no banco que dá para o prédio de janelas amplas que assistem à praça esvaziar-se quando passa o guarda carrancudo que expulsa quem sorri com um jeito de estalar os dedos que mais parece um soco no ar.
- "é possível sim", repetiu a si mesma, "e talvez seja o que haja de mais solitário", mastigou em seguida, "pois é como aprofundar solidões que em nenhum momento se encontram, multiplicá-las naquele espaço vazio e incompleto onde cada um repousa, de onde surgimos e nos espalhamos repetidas vezes". - "assim como é possível delimitar distâncias sobre imensos territórios de encantos e vales de encantarias", completou, áspera contra si mesmo.
levantar-se é sempre um desafio à gravidade, gracejou o pensamento, transferindo da mesa para a pia a louça necessária para matar a fome pouca. diferente das crianças, pensava que os encantamentos ao invés de co-moverem as pessoas crescidas em direção ao desconhecido, as inflam como bonecos e balões de ar, fazendo com que flutuem e se devolvam rapidamente à direção do reconhecível, às dores mais estimadas e familiares como os bichos, como lembranças encravadas como pelos por debaixo das peles. talvez seja por isso que, quanto mais tempo se passa numa vida, mais mirradas e xôxas e pálidas tornam-se as experiências.
poeminha corrido
ir ao teu encontro. correr até ti. como correr atrás da sombra de uma borboleta cuja(s) asa(s) bate(m) no ritmo do teu (im)pulso. correr até perder o fôlego. então sentar e olhar a sombra da própria asa estampada na parede. [correr atrás de mim pois nalgum lugar eu deixei o corpo enquanto corria]
[esperar por ti
aqui
nesse canto em que
a alma
imóvel
clama por correr
partir]
Carol Magno
Pará - N
Carol Magno é artista-articuladora cultural-pesquisadora. Doutoranda e Mestre em Artes pelo Programa de Pós-graduação em Artes da UFPA, formou-se em Letras pela UEPA e teatro pela Escola de Teatro e Dança da UFPA. Desenvolve diversos projetos relacionados a literatura, música, artes e audiovisual. Lançou Feminino à queima-roupa (2016), seu primeiro livro, que fala de um feminino íntimo e periférico na Amazônia, conversando também com a literatura erótica contemporânea. Atualmente organiza a antologia da Roda de Escritoras Paraenses.
latitude: -1,4707738 / longitude: -48,4955022

Poemas
ando meio chorosa
mesmo diante
desse dia
lindo
ando meio de revés
mesmo diante
do cantar
dos pássaros
afogada num placebo
de domar vontade de vida
presa nos vidros da TV
da janela, do celular
numa dolorosa
redoma de impotência
sobrevivendo a tantos
erros sobre erros
não há nada que adiante
neste desejo de artista
de estar presente
nos teus olhos e abraços
nem a comigo-ninguém-pode
que teima em florescer
independentemente
dessa privilegiada tristeza
---
meu pai me deu o caminho
para sobreviver nesse porvir
veio a mim num rosto amigo
me olhou profundo, virou em Dan
sorriu, pediu licença, mergulhou
no rio de minha infância
um não lugar que reconheço
uma beira de maré da Estrada Nova
o lugar de meu avô lembrar o Marajó
ver barcos e levar os netos pra nadar
água amniótica,
memórias sanguíneas do aconchego
como cheiro de peixe frito
de minha velha casa
os sorrisos de festa
as conversas regadas a cumbia
e brega e cerveja barata
o pira-pega em noites quentes
a fogueira em dia de Santo Antônio
o gosto da canjica de minha tia
a marchinha do Pinduca no vestibular
quando a educação revolucionou nossos destinos
o igapó de caroço de açaí
onde brinquei desde que nasci
os dias de ternura e de banzo
no meio do meu povo, do meu bairro, da minha história
já tão enlameada pelo tempo
Jurunaldeia
Belém
em beira de ilha
nasceu
cidade na bubuia
da baía do Guajará
dela desaguou
o Jurunas
na beira da beira
e por ser margem
mareia
é um porto
uma esperança
ao subjugo torpe
dos ribeirinhos
é aldeia de várias ruas
dos Timbiras, Tamoios
Apinagés e Caripunas
Mundurucus, Tupinambás
a Cidade Velha, Batista Campos
ancestrais casas-grandes
margeia
mas
com a terra inundada
de seus iguais
mareja
água-se, derrama-se
guamando-se
e com dor dilata-se
ao fim
retoma a beira
gênese incontestável
de aldeia
Gabriela Sobral
Pará - N
Gabriela Sobral é escritora e jornalista. Imergiu na literatura com a mediação do clube literário Leia Mulheres, na cidade de Belém, e o projeto Imaginárias - Um encontro entre narrativas imagéticas e literárias, na Ilha do Marajó, em 2016. Lançou, em 2017, seu primeiro livro de poesias, Caranguejo, pela Editora Patuá. Em 2021, teve um poema publicado na Antologia Trama das Águas, lançado pelo selo Preamar-Editora Monomito. Atualmente, reside em Belém e divide-se entre a comunicação e a literatura.

Poemas
Agricultura em areia
Informo que catorze borboletas
e cinco mil aranhinhas autorizaram
que nos amássemos ao redor.
Minhas partes cresceram em linhas inteiras.
Tornei-me um tubérculo, como sempre quis:
os fios em repouso gentil
cabeça funda, ao limite,
observando a lavagem da terra.
É inútil diferenciar escritores de residência estéril
dos reais argentinos.
Do meu posto, de cabeça de tubérculo,
fico com os últimos.
Praça dos Estivadores
Eu preciso catalogar as palavras que digam
com autorização semântica:
gosto de água, em temperatura fria, caindo na testa
na Praça dos Estivadores.
Que palavra é essa que vai abrir uma rachadura
e fazer aparente todos os filhos da terra?
Se eu acho essa palavra,
pego ela, na unha.
Terno púrpura
Nasço
de um relato sem importância
sobre retratos de coloração roxa.
Né nada né nada
nasço berrante.
Manifesto pela Obviedade
Buscamos comunicação integral
doc., text., não completam uma palavra
Já estruturamos o direito ao onírico
ao grito
a um nariz que nos coubesse
e a pretensão de uma humanização em artigos
Revisamos nossas formas
Como se renascer fosse possibilidade
Não é.
Manifestos redigidos por afetação
quem dera fosse paixão
Qualquer obviedade, agora, é sobrevivência
Clamamos, a partir de então:
o Manifesto pela Obviedade.
Daqui deste buraco
com algumas plantas, algumas madeiras
repetir os materiais reconhecíveis
O primeiro ato é a toca consciente de nossas mãos
os acertos infantis para o consenso
Precisamos formatar sem exigências
Construir como manuais navais
Todo cuidado com a primeira matéria:
Não repetir o que somos – os restos.
Abril
Tenho gostado tanto da palavra cara,
ela soa como o imediato, este que se tornou nosso futuro.
Me chamaste de 'minha cara', achei engraçado,
pois é realmente isso o que eu tenho a oferecer:
a ti,
ao mundo.
E o mundo, agora, reside, exatamente,
todinho no papel que te escrevo.
Minha cara é minha única matéria,
e canso de ver tanto sobre mim nesses dias de eterno espelho.
Que bom que me escreves
Ando pensando que a pressão do vento sobre os cílios ralos
seja porque ele realmente tem uma cara, um rosto para variar,
ou seja, mesmo, pesadamente, valioso.
Voltei a tomar café coado
sem a chapa da cafeteira.
Somos feitas de hábitos
não de presas, mas de movimentos.
Sobre esses, os observo, os cuido
não fujo mais deles, não os afugento.
Vamos arquitetar cada um, elegê-los,
ergue-los.
Que a tal da minha cara não registre mais o medo
da capacidade de sermos livres,
como o dia que deitamos no chão,
e fomos resgatadas pela cara amarelada de um louco.
Enquanto o beijo encontra a estrela
abro-me como pasta de arquivo
retomo, alfabeticamente, a nomeação dos sentidos
Hoje é perigo chamá-los por seus nomes,
compram-se manuais, distrai-se com fragmentos,
como se não soubéssemos que a maioria deles
são compostos pela vogal 'a', o começo de tudo.
Talvez seja, pensando, na vogal 'a', nesse pretenso começo,
que invejei, no dia de hoje, uma grávida.
Ela embalava uma suposta cara sobre o mesmo sol que, antes,
despediu-se de ti.
Invejei aquela pele despontando, o bico cada vez mais preto,
me pareceram tão certos.
Acho que vi nela, no sol, na criança e no bico preto a verdadeira cara do mundo,
pois esses são insistentes em matéria de nascer.
Inaê Nascimento
Pará - N
Inaê Nascimento é escritora independente, artesã de cosméticos naturais, artista, astróloga, oceanógrafa, mestre em biologia ambiental. Conhecimentos e habilidades diversos que convergem na contemplação das poéticas pessoais e naturais, e no intuito de conhecer e cuidar de si, do outro e da Terra, para o exercício de uma identidade coerente com a natureza que somos e habitamos. Inaê é cria das águas amazônicas, atua em Belém, é escorpiana e gosta de espiar os mistérios das pessoas e do universo.
latitude: 0,3572671 / longitude: -50,1152125

Poemas
Afloramento
No penúltimo dia, fui me despedir dos pagurus. Chegando no afloramento onde se amontoam, fui recebida por milhares de cracas e seu cano espumado. As cracas e as espumas do mar possuem idiomas muito parecidos. Escutá-las conversando tem o poder incrível de nos pôr no presente. E eu fiquei ali, escutando, olhando suas fissuras, observando as caverninhas do afloramento, a vidinha dos pagurus… vez ou outra uma anêmona cochilando enquanto a maré não vinha, vez ou outra cumprimentava uma anêmona acordada… os corruptos colocando o lixo pra fora, um caranguejinho se escondia aqui, um siri entocado acolá… De repente, eu não era nem mais nem menos. Antes ou depois se desmancharam na espuma murmurada aos meus ouvidos. Eu era um afloramento de sensações do aqui e agora.
Esse não é um livro de auto-ajuda
Esse não é um livro de auto-ajuda.
Ao contrário.
É um empurrão
uma rasteira
Não posso crer no alcance da luz eterna e sublime, sem antes ser
tragada
em folha
seiva
raíz
ser transportada até o submundo
a terra úmida, escura - em seu exercício de decompor e nutrir, como quem corta a carne em pequenos pedaços para que o filho não se engasgue - a terra
a cobrir todo meu corpo
me engolir
digerindo cada camada até o osso
a luz está no cerne denso e quente
o núcleo da Terra
o meio da galáxia
o centro de si
onde quer que si seja
é um mergulhar abissal
uma viagem espacial sem maquinários
para encontrar a luz
antes
é
preciso
entrar
em
combustão
Antares
Se eu tivesse sido a paixão que senti por ti, nós não existiríamos, amor. Seria supernova, e teus olhos, esfumaçados de nebulosa, não te avisariam do buraco negro logo a frente. Eu te engoliria. E no lugar que havia nós, teria apenas uma poeira de elétrons a ser varrida.
Talvez eu devesse ter te engolido. Mas não. Preferi engolir a seco a gigante vermelha que tentava escapulir pela boca, por todas as frestas.
Pensei que devastaria uma cidade. Tive medo de me entenderem mal. Agora, nem me cogitas. E no espaço onde havia um estômago e um diafragma, uma nebulosa encorpada. Em breve, um buraco negro me engolirá ao avesso. Com sorte, pode ser que encontres um quasar no universo aqui dentro.
Palavras recorrentes
Das palavras úmidas a que mais me diz é estuário. O próprio rio me vem porque entranha a memória. Memória enxergo nas rochas. Rocha, assim como areia, das minerais são as palavras que sempre vem. Acho, é herança da oceanografia que me deixou com várias palavras marinhas e geológicas brincando pela língua, como abissal, dorsal meso oceânica e a dança tectônica das placas litosféricas.
Gosto da palavra língua, como gosto de sal e calor porque me lembra pele, cheiro, poro. Gosto do bicho, do monstro e das palavras selvas. Um dia, quis tatuar a palavra selvagem porque é palavra que respeita a natureza das coisas. Gosto das palavras naturais como gosto do nome dos deuses.
Gosto das palavras ponte, portal pois atravessam e conectam e me deixam pensar que mandinga é um tipo de tecnologia, e traduzir amor e espanto em palavras intergalácticas e subatômicas.
Bordado
As cores que te ouvi tinham um tom azul verão desses que pinta o céu de pássaros e pipas, vestem as pessoas de leveza e as obrigam a ocupar praças e tomar sorvete. Me soaram como cartas de amor.
Não o amor chiclete das sofrências nas rádios, mas o amor suave bordado com esmero na simplicidade da rotina. Sabe o amor que tem cheiro de café fresquinho abrindo o dia? Que reconhece quem vem vindo pelo som familiar dos seus passos?
Me fez lembrar dos detalhes dos meus próprios amores, e me fez pensar que é esse amor que se imensa nas miudezas que faz a memória ter sabor, cheiro, textura, voz, luminosidade.
Mayara La-Rocque
Pará - N
Mayara La-Rocque é graduada em Letras pela UFPA, escritora, educadora e artista. Transita por diversas expressões artísticas. Em 2016, produziu o livro artesanal e a instalação Atravessa a tua viagem para a exposição Alfabeto de ficções. Em 2017, publicou o livro Uma luminária pensa no céu (Edições do Escriba). Em 2019, participou da exposição Tenho medo de perder esse silêncio: cinco vozes femininas promovida pela Fundação Cultural do Pará. Atualmente desenvolve o curso Escritas de si e outros laboratórios voltados para experimentação e criação com a palavra.
latitude: -1,3983032 / longitude: -48,4350716

Poemas
Ossos
sonhei com minha vó/ eu carregava no colo
um feixe amoroso/ de ossos.
Simone Brantes
Certa vez escrevi que crescer
era o mesmo que mergulhar
em estilhaços,
catar e recompor os ossos,
remontar o esqueleto da infância
Penso em como deve ser
catar todos os ossos
- em pleno meio dia -
Ensolarada,
de olhos vidrados
fumegando na retina amarelada
O acrílico
e a parede cimentada
do quarto de minha vó;
voltar para o lado de fora
das persianas amadeiradas
e olhar as lajotas portuguesas,
o pó sobre a mesa da cozinha
onde minha avó,
dia após dia,
cozinhava,
com todas as xícaras quebradas
As xícaras eram de porcelana antiga,
a pintura rubra delicada
lembrava o corte de uma flor
despetalando sangue entre os dedos
Isso me reporta o dia em que,
vagando entre as mobílias e os cômodos
da casa
ao invés de ossos,
eu me dei por juntar os cacos,
não só da porcelana,
mas também dos porta-retratos
com moldura de gesso que
por algum motivo
estavam em pedaços.
Colei com super bonder as bordas
e acabei grudando os meus dedos,
encravando minhas unhas
e a carne foi ferindo por dentro.
Passei a noite
revirando por debaixo da pia,
a procura das panelas
que minha avó ali guardava
De tanto areá-las,
ela tinha os dedos carnudos,
também feridos.
Dizia que
a melhor maneira de fazer passar a dor,
era amornar a água
e mergulhar a mão
dentro da mesma panela
que causou o ferimento
e lá deixar repousar
por horas e horas
até amolecer
partícula por partícula
todo o cinza
ou
talvez toda a ausência
e o feixe amoroso
que um dia endureceu.
Prece
Eu não sabia
Nem tu sabias
Nem mesmo
alguém desconfiava
que toda manhã
- Quando a neblina
ainda espessa
ancorava sobre o rio
e se demorava
por levantar pássaros
extraindo do orvalho
o sonido estridente das cigarras
-um grilo intumescido
um alvo senso
no acordar
da estrela solar-
ele calava diante das águas
numa prece pastoril
sacro-ofício de quem na vida
encontrou-se a perder
e ver
tudo o que já lhe arrancou o tempo
- o mesmo que ensina sua filha a crescer -
E ele sabe que dessas grandezas,
a falta que só cabe
na esfera da saudade
e no que não se pode mais dizer
e no que não se pode mais fazer,
é um além que caminha lado a lado
de correntes atadas aos pés
uma pedra gigante sobre as costas
que ali
ante a lama
e o respiro
dos seres invertebrados
- artrópodes
umectando o ar -
ele, o Anfíbio
agora soltava
No estrondo do silêncio
desaguava em direção às margens
não um segredo intocável
ou qualquer coisa indecifrável
mas aquilo que tu certamente sabes
e eu também
e nem mesmo alguém precisou contar
pois
É sobre o que também sabem as mães
ao lado de seus filhos
na maca de um hospital
É sobre os invernos das cidades
e os mendigos sem vestes
sobre as míseras migalhas de pão
no coração dos corruptos
sobre o desvio
opulente o abandono
a solidão
Aquilo que só se revela
no gélido da aurora
e penetra nossa face
quando se pode tocar
o frio da manhã
dentro do peito
é quando o peito
abre
até o osso
é quando
de súbito volta
uma canção que diz
sobre a infância
reencontrando o tempo
é sobre tudo o que se ama
sobre tudo o que se chora
e por mais uma vez
desaparece
na curva do rio
Para ti, mulher que escreve
No repertório selvagem de Olga Savary, deparo-me com um poema de Neruda. Esse velho à beira do mar diz conviver com um oceano intratável dentro de si, o silêncio lhe é caro e sua razão vive na intempérie; segundo o poeta, a única saída para se viver essa vida sem saída, é entregar o coração ao mar,
entregar o coração ao mar
entregar o coração ao mar
eis a tua sina em escrever
escreves porque não tem saída
porque a única saída é desaguar
hoje, são tantos os que nos dizem como se tem que viver e, dessa forma, a vida nos custa um bocado, parece até que nos arrancam um pedaço de pele e osso a cada dia, e isso não chega a nem mesmo ser uma metáfora, pois que somos mesmo feitas de pele e osso a se desfazerem em pó. Mas o ponto em que toco ultrapassa a gravidade da morte; da vida, no tempo em que hoje se vive, nos roubam o próprio tempo; não porque a vida seja muito longa, pois é mesmo de sua natureza ser passageira, mas é porque, em verdade, dela, nos assassinaram o eterno - o tempo que pousa em lugar algum; tudo se segue muito veloz, e pouco se sente a respiração do tempo que pousa em lugar algum, pouco se sente a respiração de qualquer coisa, ou a respiração de tudo, e o pouco de tudo se esvai como se nunca se tivesse existido.
Tudo é tão raro
e eis o quando tu escreves
para fazer retornar o eterno
pássaro cambiante da lua
para fazer alargar o tempo
arco revolto em lua cheia
para finalmente fazer existir o tempo
a respiração de tudo
a tua mesma respiração
lenta e aguda
cálido ar que exalas em profundidade,
escreves para dizer que não somente sobrevives desse ar
como te ergues de dentro dele
e que é impossível
sobrenaturalmente impossível
viver sem aquilo que dá ânimo ao fogo
é humanamente impossível
viver abaixo de qualquer mistério
escreves para dizer que és o mistério
e quando nada mais puder suportar o vazio de se carregar um oceano intratável por dentro
escreves
para saber-te a própria nascente do oceano que jorra de ti
escreves para dizer que estás aqui há muitas e muitas vidas e que segues
sempre em delírio
e que é preciso
é visceralmente preciso
estar eternamente em delírio
diante daqueles que tentam te calar
escreves porque são tantos os que tentam te silenciar
e não é fácil, custa lapidar a própria voz
mas é esta mesma que cavalga há eras galopando multidões em teu peito
falanges milenares acesas, mais velozes que o tempo deste mundo corroído
é então que escreves,
enquanto o mundo desaba
tuas ruínas - memórias crescem em segredo
tão antigas quanto a palavra que te guarda no tempo
e para ti, nada resta além da palavra que te revolve o eterno,
que zela tua indômita sede ronda teus instintos crava tua infindável procura
com tuas palavras investigas um sítio arqueológico submerso além do tempo
por debaixo do oceano é que o teu poema acontece
é então que escreves
E contigo também escrevo.
Relâmpago
Tu não podes acercar
o tempo de uma Ave
sobrevoando em seu próprio eixo
Asa e negra pluma
Concavando
Vórtice
Arco translúcido
entrecortando
A tempestade
-fagulha de luz
cobre e ferrugem
que estremecem
e rebentam
o crepúsculo
num trovão-
E nada podes falar
Daquele dia em que estive
Na penumbra
Era quase escura
a lua
repousando
entre as plantas
- terreno estreito
onde só pôde adentrar
minha felina e eu
Ouvíamos capturadas
De antenas ancoradas
o assovio que
vinha galopando
entre os prédios
e as luzes da cidade,
lançando seus códigos
em vermelho rosáceo
açoitando
a indiferença
do asfalto
extraindo petróleo
das lajotas
do oitavo andar
onde só nos restou o cinza
A cada passagem de nuvem
gotejava uma mensagem indecifrável
aos olhos da língua
grafia fonética alguma
soletrava
O Impronunciável
E, no entanto,
Aferimos
em testemunho
O Insondável
Cegas
Inteiramente cegas
Com o faro aceso
Rondadas pelo silêncio
Inebriadas de um mantra
Incognoscível
Não fosse o salto súbito
Que Kali
– a gatuna –
Pronunciou em sua pelugem
Musga
E retina amarelada
:
Clareou
entre
as sombras
a janela de vidro fumê
a mesa de mármore
o armário de vime
a porta de cedro
as quatros paredes brancas
demarcando
toda a antessala
toda uma vida anterior a essa
as setes vidas ressuscitadas
e o sítio de vinte metros por vinte e três
em que estávamos.
Bússola
Per - seguir
o limiar do sonho
caminhar
ponta
a ponta
a praia
Nua
Atraves-sar
sob a sombra do barqueiro
o pêndulo das águas
o líquido em suspensão
aleitando
a fonte
o candeeiro
a nascente da lama
Per - furar
o centro da terra
com os pés
e criar calda de sereia
com o canto
da lágrima
espectro
lantejoula
festim
avoaçando
grãos de areia
fascina-me os contos
que ouço
dos entornos da ilha
o lendário
da mata
que cria
o medo de ir
o querer
arrastar o corpo
contra o vento
dançar
e reaprender
o dialeto cigano
de estar completamente
sozinha
e se apaixonar
ou
estar por inteira apaixonada
e andar-ilhar
con-sigo
ante-ver
no outro lado da beira
a ciranda lua cheia
subindo
com o baixar do sol
o rosa despetalando
o principio da noite
e a voz sibilando
o grito da criança
que um dia se perdeu
por entre as dunas
e desde cedo
aprendeu
o que é a solidão
um deserto de onde só foge
aquele que não está desperto
dentro do sonho
lugar em que o esconderijo é aberto
para quem quiser
se encontrar
labirinto
templo abandonado
habitado por nós mesmas
deusas esquecidas
sexo rejeitado
espancado por tantas vidas
tantas auroras não ouvidas
os luares olvidados
a negra pérola
lapidada em alto mar
onde só o tempo revelou
A Obra
A Escuridão que criou
a bússola da noite
e o seu véu
e a mulher
em pleno parto
abertura das encruzilhadas
onde
o olho
da Mãe da Água
iria
aria
aborda
o tampo
do caldeirão do mundo
O Mesmo
O Tudo
O Nada
O Único
Receptáculo
que preenche
o âmago
de qualquer faminto
Paloma Franca Amorim
Pará - N
Paloma Franca Amorim nasceu no ano de 1987 em Belém do Pará, é licenciada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo. Em 2017, lançou seu primeiro livro de contos Eu Preferia Ter Perdido Um Olho, publicado pela Alameda Casa Editorial. Além de escritora é pesquisadora de artes da cena, educadora e artista visual.
latitude: -1,5648226 / longitude: -47,9838813

Poemas
8 ANOS
Sangra o lamento
sem peito
o peito se foi antes
esmagado
ficou mãe e pai
às bordas da razão
da morte o ventre largo escuro se abre arrebentado
puxa o corpo da menina de volta
e ela volta
arrancada pelos cabelos
apunhalada pelas costas
sob o parzinho de sandálias
dois precipícios cada
a menina expulsa da vida
foi ser novamente
coisa do invisível
gente que deus não vê
como todo dia
- se viva -
houvera sido
---
pequena na lavagem das escadas
gigante pelo cais que me arrebenta
eu sou aquela uma
daquele rio
que sonha sobre a pedra
ANTES DE NASCER EU ERA PÁSSARO
Antes de nascer eu era pássaro
Não um
Oito
Oito pássaros de fina tarde
Foi depois que eu nasci que eu fiquei só
DESSA VEZ EU VOU NASCER RAIO
dessa vez eu vou nascer raio
singrar à leste
queimar o moinho
libertar os cavalos
incendiar os telhados
inundar as cidades
as cidades vão cair
um ruído óptico,
um imenso e gordo raio azul
fibroso, duro, tenro, agridoce
a alvejar a retina do olho de touro
de um cego na rua que me pode ver
retalho o céu em doze cenários
embaralhados
para engravidar de meus pássaros
não uma lâmpada
sem felicidade
sem infelicidade
não:
raio
o raio é do avesso
pra dentro
um espelho
dessa vez eu vou nascer raio
para lançar-me do farol
passar pelo corpo de
asas amarrotadas
no qual o anjo
está aprisionado
dessa vez eu vou nascer raio
vulto elétrico da chuva
tristeza da chuva
alegria da chuva
um gesto sem ossos
um grito sem voz
a primeira manhã
depois da solidão
Roberta Tavares
Pará - N
Poeta, historiadora afro-amazônica, mestranda em História social da Amazônia. É uma das curadoras do Sarau do Povo da Noite, e do Xirê Literário. Autora do zine Mulheres de Fogo. Vem de uma comunidade quilombola às margens de um igarapé amazônico chamado Cravo, que também pode ser árvore e verbo conjugado, escorrendo para o rio Bujaru. Sendo filha deste bendito igarapé, carrega-o cravado em si, por onde quer que vá.
latitude: -1,4543478 / longitude: -48,4675382

Poemas
cidade inundada
tão
alta
esta
maré
esta
baía
guarajando
como
guajaravas
em mim
naquele
outro
março
maraltavas
molhavas
eu inundava
O poeta comedor de flores
Sabe,
vou te contar
namoro um poeta
comedor de flores
confesso,
quero confessar
namoro um poeta
comedor de flores
eu, sua aprendiz
ando agora a me nutrir
de rosas vermelhas
sabe, talvez esse poeta
comedor de flores
ainda faça
tornar-me vegetariana
II mote para uma ode à Adelaide
Pelos teus braços
Quis voltar a infância
Para aquela idade vindoura
Como outrora catei teus parcos
Cabelos brancos
Resignei-me de todo ateísmo
Te levei em tuas novenas marianas
Juntas nós duas entramos em transe
De cânticos e palmas
Com vozes estremecidas
Rezamos Salve Rainha
Enquanto nos segurávamos
Nas mãos uma da outra
Enfim despertei e não estavas mais
Quando seus olhos se enchiam de lágrimas
Sei era Tomázia tocando-lhe a alma
Entendo agora como nunca
Eu: pássaro inquieto
Na morte de Marielle Franco
Uma sombra de pesar me sufoca
Me sufoca um corte sangue
Estremecem minhas veias
Como lâmina a dilacerar minha garganta
Como profundas noites escuras
A espalhar fúnebres cantos
De lamento
Anunciando
Um corpo negro que tombou
Uma aurora que se perde
Na solidão do frio
Quando a chuva lambe a cidade
Deixando salivas apodrecidas
Pelo chão
E foi mais um corpo negro que tombou
Trovões que soltam uivos de tormentos
E foi mais um corpo negro que tombou
Um corpo de mulher
E gotejam chuvas, gotejam lágrimas e cantos
Lamúrias que se olham por entre nossos corpos
Um corpo negro que tomba
Corpos retintos de mulheres tombados
Corpos de mulheres que seguem
Seguem porque são tombadas ao se levantar
Tombam porque se levantam
Desde de tempos imemoriais
Onde outras também tombaram
Porque ousaram se levantar
E eu que queria falar muitas coisas
Mas esse silêncio se impõe em mim
Porque hoje foi mais um corpo negro que tombou
E cantou como as cigarras que secam após o canto
Sucede que os cantos das cigarras ficaram gravados
Em nossas memórias
Por isso não quero fazer um poema
Quero apenas lançar um murmúrio
Acender essa esperança sem poema
Porque isto aqui é uma súplica de mim mesma
E quem sabe de nós
E enquanto o canto das cigarras
Pairam em minha cabeça
Tombam outros corpos pretos de mulheres
Averequete em guma
(Para mãe Lulu e para todos os integrantes do terreiro de Tambor de Mina Dois Irmãos, no Guamá, o templo mais antigo da Afro religiosidade, fincado em terras amazônicas.)
Tudo brilhava
Luzindo a azul
A branco e amarelo
Chegou Verequete
No templo sagrado
De Tempo antigo
Da mina nagô
E todos ali
Pediam sua benção
Deitando em seus pés
Saudando o vodum
Vodúnsi mãe Lulu
De passos longínquos
Trazia em sua cabeça
O Nobre vodum
De passos longínquos
mãe Lulu vodúnsi
Trazia em sua cabeça
O clã Queviossô
E todos vieram pedir
Sua benção, deitar
Aos seus pés
Prestar devoção
Passou verequete
De mãe para filha
Num sopro divino
Ao som do tambor
Minero ê, minero ô
Verequete chegou
Verequete chegou
Chamou Averequete
Na guma ê ô
Voduns e fidalgos
De Mina nagô
Vararam oceano
Trazendo Ewe-fon
Trazendo acessa
A luz do Benin
Toy Verequete
Tói Averequete
Abrindo o terreiro
Da Mina-nagô
Não foi a Bahia
Não foi meu senhor
Nem mesmo a Corte
Portal que alastrou
Nossa divindade
Da Costa da Mina
Varou oceano e
Aqui aportou
Foi o Maranhão
Foi sim meu senhor
São pedras profundas
Da Mina Nagô
Benin, Daomé
Do jeje ao fon
Portal Maranhão
Na Amazônia plantou
Ná Agontimé, Ambrosina
Josina, mãe Lulu!
Mulheres vodunsis
Da mina nagô
Vararam oceano
Trazendo Ewe-fon
Trazendo acessa
A luz do Benin
Toy Verequete
Toy Averequete
Chefe de terreiro
De Mina-nagô
Shaira Mana Josy
Pará - N
Feminista negra, rapper, MC, escritora, poeta e pedagoga. É coordenadora do projeto Slam Dandaras do Norte. Iniciou no hip-hop de Belém do Pará há duas décadas. Autora do livro de poesia marginal PoEusia e Poesia que protege, para ler brincar e alertar.
latitude: -1,4549534 / longitude: -48,4508274

Poemas
Refugiada
Sempre estivemos caminhando na mesma estrada, embora nós
mulheres
Vivendo das migalhas.
Toda raiva que carrego comigo não é sem razão sem um motivo.
Me utilizo de todo o recurso possível para enfrentar as
dificuldades,
Impedir que a violência se alastre, e que outras por essa vida não
se apaguem.
O Impacto provocado pelo machismo é como uma ferida recém-
aberta
Algo crônico que nunca sara, pode passar o tempo que passar tá lá
Na cicatriz a história, fatos de uma vida que não escolhemos
viver.
Fomos queimadas, apedrejadas, subjugadas, satanizadas,
Por vezes santificadas
Em nome do pai, do filho e do espírito de um santo que não
concorda em nada com isso.
A cada 5 minuto uma mulher é agredida;
A cada 11 minutos uma mulher é estuprada;
A cada 2 horas uma mulher é assassinada.
Morremos todos os dias física ou psicologicamente
E como se não bastasse o transtorno, ainda somos culpabilizadas
Uma insanidade que nos foi imputada.
Na real, são como fantasmas
Assombrando nossas mentes constantemente
Apenas nós sabemos que não é ilusão.
Estamos adoecidas de medo
Um desespero, uma angústia, quase um pânico que nos segue
Nas ruas vazias, nas tardes sombrias, nas esquinas, até nossos
lares.
E quando achávamos que estávamos seguras no interior de nossas
casas...
Eis que estão também lá nossos algozes.
Rituais foram feitos para nos aprisionar, nos limitar
Enquadrar em regras que apenas nós temos que seguir de forma
exata.
De terno e gravata, acima de qualquer suspeita no altar
Uma aliança consagra as promessas de amor eterno e paixão.
O homem ali inicia seu plano de destruição.
Na saúde ou doença, na riqueza ou pobreza, respeitando até que a
morte separe
Esse era o trato, assinado em contrato tudo parte do jogo forjado.
Talvez seja por isso que nos ceifam a vida tão precocemente
Para que o tal contrato se acabe o quanto antes, literalmente.
Tento acalmar os nervos de alguma forma,
Sobe uma irá quando se recorda de tempos de mentira e agonia
que relampeja na memória vez ou outra.
Decidi externar minhas preocupações usando não a oralidade
Mas sim outro código da linguagem para extravasar.
Então, mulher preta que sou diante da solidão que me foi
conferida injustamente escrevo metamorfoseando a dor.
Busco no fundo da minha existência inspiração que ainda resta.
Me valho da metafísica, da hermenêutica e assim transcorro.
Minha ancestralidade confirma que as raízes estão firmes
Fincadas nessa terra sobre a promessa de nunca desistir.
Protejo meu útero de gerar seres inocentes, em atos inconscientes
que possam sofrer nesse mundo tão cruel.
Temo a todo momento que a tal libido me arranque um ato sem
consentimento, e meu plano seja interrompido por completo.
Parir para ver sangue jorrar nessa terra de misóginos não é minha
meta.
Penso assim, fato que não faz de mim insensível pelo contrário.
A sensibilidade é tanta a ponto de me tomar por inteira e de
encorajar-me a expressar os sentimentos na íntegra.
Quero acreditar que um dia as lágrimas de uma mulher sejam
apenas sinônimo de felicidade, que as relações sejam boas para
ambas as partes.
Enquanto esse dia não chega deposito nas palavras minhas
descobertas e relativas verdades e certezas.
A poesia é refúgio
É esconderijo onde me guardo as vezes até de mim mesma.
Em cada linha reside a possibilidade de refletir, mudar o trajeto.
Meus versos as vezes são gritos
Dissipo as dores de ser mulher nessa sociedade do absurdo.
Preciso me livrar da imagem da mocinha indefesa
Da tal princesa que só tem sentido quando o príncipe a beija.
Na verdade eu mesma não nasci para ser a princesa
Meu espírito é da guerreira.
Preciso me livrar da fragilidade que insistem em achar em mim e
que me fizeram portar a vida inteira.
Esconderam a história verdadeira.
Sempre empunhamos espadas
Foram nossas as flechas disparadas.
Nosso lugar sempre foi ocupado, usurpado, por homens cuja
única preocupação é o tamanho de seus falos.
Cansei de perguntar porque!
Cansei do quase chegar no poder!
Pode parecer tarde, mas não é o fim.
Escreverei nossa história e tempo é quem vai contar por mim.
Retomada feminina
Eu sou aquela
Durante anos silenciada
Eu sou aquela
Conselheira de um tal homem na estrada
Eu sou aquela
Que ele não quis lembrar
Quando até o chão eu construí pra ele pisar
Em seus livros de honra e glória não constam nossas memórias
Apagaram cada linha escrita da nossa história
Mas eu vim só avisar
Que o que é meu eu vim buscar
Pois...
Carrego nas veias o sangue das bruxas
Que o machismo não conseguiu queimar
E não passarão
Nenhum que tem o nome na minha lista
Machista, racistas, criminosos feminicidas
Nem quem incentiva sentimentos de aversão ou covardia
Não terá perdão!
Lesbofobia, transfobia, misoginia
Vão arder no fogo da minha ira
Esperei por esse dia vão pagar pra ver
O universo vai tremer
Sabe porquê?
Eu chego pra representar daqui de cima
Sou Norte
Sou Pará
Sou hip-hop feminista
Ultrapassando as barreiras com a fúria de um vulcão
Saí da frente eu tô chegando no olho do furação!
Quebrando paradigmas com rimas de revolta
É sem delicadeza, é com firmeza e pé na porta
Eu sou Dandara
Anastácia
Aqualtune
Eu sou guerreira
Tu me viu, não finge não, vou sacudir a terra inteira
Aqui é mulher negra calando a boca de macho escroto
Que diz que mulher preta não se valoriza
Ai se liga!
América latina vai ser toda feminista
Não aceito retrocesso e nem desculpa esfarrapada
Sou oásis no deserto
A energia do universo acumulada
Nada me pára!
Nada me cala!
Sou o próprio cão de batom e saia
Agora corre! te esconde, ajoelha, te humilha e implora
Sem piedade vou passar e pisando nas tuas costas
Venha o que vier
E seja o que a deusa quiser
A queda do patriarcado vim assistir de pé.
PO Eu SIA
A poesia é subjetividade.
Sinestesia quando degusto cada palavra antes de servi-las.
Antítese transformando o sentimento negativo em positivo.
Pleonasmo quando nem a morte é capaz de matar.
É vicio,
Desejo,
Orgasmo,
Perspectiva,
Saudosismo.
Luta incansável,
Resistência,
Melanina,
Fé,
Força feminina.
Companhia nas horas de solidão,
Luz na escuridão,
O melhor de todos os remédios.
Com-pre-en-são.
Bicho de estimação,
Colo de mãe.
Poesia é viver em paz com o próprio eu lírico.
Wanda Monteiro
Pará - N
Wanda Monteiro, escritora, uma amazônica nascida à margem esquerda do rio Amazonas, em Alenquer, Pará, Brasil. Tem diversos livros publicados, sendo o mais recente Aquatempo Aquatiempo (Ed Patuá, 2020). Participa de duas coletâneas: Ato Poético (Ed Oficina), organizado por Márcia Tiburi e Luis Maffei e Antifascistas - Contos, crônicas, poemas de resistência, organizada por Leonardo Valente e Carol Proner.

Poemas
A filha do rio
Tudo corre ao avesso do tempo em mim
esse outro modo de espera a fluir por dentro
e tudo que não flui fica dito no intento do tempo em desinventar-me
Pode o rio ser essa serpente que me seduz à foz?
Pode ser eu, em suas entranhas, a caligrafia sanguínea: homem e mulher na transfusão de sua passagem?
O rio esse verbo a conjugar-se em se morrendo e se vivendo à luz do instante em seu ventre.
Já é tarde para o sol
A casa
afoga-se no mofo das ausências
no limo dos azulejos
dorme o pretérito
das cotidianas presenças
no-mínimo-círculo-de-calor
-da-ultima-lâmpada-acesa
insetos dançam
e fenecem
em queda espiral
um feixe
de malograda luz
atravessa o vidro rachado
com intento
de irromper o vão da sala
já é tarde para o sol
tudo se cala à solidão
lá fora
a história seca na casca da cigarra
vai chover
A manhã em seu casulo
Há tanto não vejo
o riso da manhã
ela em seu casulo
concentra o tempo
guarda toda luz
o vento faz silêncio
o fruto não cai
a música não toca
à proa do pensamento
outro gesto irrompe
a brevidade do vazio
ainda é noite
Pretérito leito
erigir do tempo
pretérito leito
adoecer de lembrar
quedar-se em silêncio
de surda ausência
velar no céu da boca
estrelas mortas
de negar auroras
O corpo esse mar de sal e sangue
O corpo é esse invólucro de mil estrelas calcinadas em ossos
que lhe ergue e move
primitiva paisagem a desarrumar o ar
sibilante ao vento
Como lhe dói essa dor terrestre
na amputação das asas
em passos cegos de horizonte
O corpo é essa ilha fria coroada de ar
enraizada em si errante em distâncias
Como lhe pesa essa busca escura
funda de passo a passo
no dessaber da gênese
O corpo é esse fosso fechado
para o quase sempre
a guardar o fulcro d’alma
em seu próprio tempo
Como lhe cega o nome
calabouço destino consumado em membranas tecido em vísceras
O corpo é esse mar de sangue
a ondular na consumação das veias
o mar esse corpo abre-se em poros
para sorver o escuro – a luz – o ar
na urdidura do tempo
Entreato
no exato quando do entreato
o tempo nos toma de assalto
parte-nos ao meio
aloca-nos fronteiriços
imersos no espanto
olhos no passado
olhos no futuro
o presente
carregado
de
impossibilidades