Ãna dy Nanã
(Ana Pedrosa)
Bahia - NE
Artista visual, poeta e pesquisadora. doutoranda em literatura e cultura pelo Ppglitcult/Ufba, mestra em estudo de linguagens pelo Ppgel/Uneb y graduada em artes plásticas pela Escola Guignard/UEMG. Fundadora do grupo autônomo de estudos y ações artísticas dissonante – experiências entre arte e saúde mental. Atua em exposições individuais y coletivas, mostras y feiras desde 2008. Lançou dez publicações independentes de poesia em seu nome y do seu heterônimo manuel-lua-cheia. Tem experiência com mediação y curadoria em artes e saúde mental. Assina o selo candeia – objetos de arte.

Poemas
Munguzá
milho branco de molho
1 dia
lavo
escorro
água
fogo
cozimento
coco quebrado
batido
leite
cravo
canela
doce
fervo
najé
suspendo
hálito
ofó
mãos abertas
olhos fechados
digo o seu nome
salubá
broto {como grão}
canto
reverencio
adubar
significo -
alimento pra cabeça
é texto
---
Roda
o
silêncio
som
narra
um
ciclo
sem
pausa
dança
contra
horário
outro
tempo
entre
a
voz
y
a
pauta
os
pés
descalços
palavra
por
palavra
Tempo
Vou sozinha cavalo do tempo
Cavalgo sem medo
Cada marca é tudo que eu tenho
Y não é nada
Prossigo sem carne aberta
Olho pra terra
Promessa
Tenho um corpo que a pertence
Nada é meu
Que eu possa pegar
Só vou de posse ao infinito
Cavalgo
Espiral
Cavalgo
Fecho os olhos para abri-los
Filha mãe avó antepassada
Transe
percebo:
Só existe o que é eterno
---
Fundamento
era noite de um azul profundo
a lua clara parecia se mirar pela janela
chamando para si as vistas atenciosas
sentada sobre o descanso do dia
o toque ecoava
sagrado como a terra.
a voz de um outro tempo
se instaurava sutilmente
fluida como a água
nas entranhas do corpo que banha y limpa
fazendo vibrar um diferente estado de coisas
de alma a contornar o espaço
os pés tocávamos o chão
onde a conexão fazia
carne se sabendo substancialmente
matéria do espírito
um ronronar ecoa sobre os tijolos
cimentos
paredes
construção
penetrando a brutalidade daquilo que cerca
para cercear
se impondo sobre tudo
numa completude própria
de elemento essencial
da janela, brecha de breu,
um portal de luz aponta
impávida
grandiosa
certeira y serena
como a materialização da sabedoria
sua presença genuína
suspensa feito tótem
os olhos negros atentos
seguiam nossa mesma direção
mantinha sua figura, agora muda,
na continuidade eterna daquele instante
até que tomando alongado impulso no vento
bateu suas asas imensas y lentas de ave noturna
y sumiu na imensidão do teto infinito comum que nos ancora
nós, aqui embaixo, pés no firmamento
ligados à ela
através das palavras contidas
em tudo aquilo que,
nos mantendo de pé y presentificando sua existência
para devolver sentido às nossas,
chamamos de fundamento
Ana Luiza Martins
Bahia - NE
Sou Ana Luiza, tenho 27 anos, sou poeta, baiana e filha de piauienses. Escrevo prosa, poesia e alguma coisa no meio dos dois, desde criança. Também sou bacharel em direito. Nunca publiquei em papel, mas sempre mantive meios virtuais de divulgação da minha escrita. Moro em Salvador, na Bahia.
latitude: -5,0483868 / longitude: -42,8226052

Poemas
black love
they told me to love no black male
cause loving black men is dangerous and
if I choose a black man
I will probably have to squat naked in front of a mirror to visit him soon
and my children will certainly born as black as we are too
they told me that black male are violent and
commit crimes
that they are never good parents
and always
betray
and lie
but then I listen to that song in the radio
where the singer says
True true love, love
Sweet sweet love, love
Holding me this way with love
Keeping me this way with love
and since then I know
that I’m in love with this young man I’ve met
and he is so sweet even
being black
black and sweet as brazilian grape
black and proud as James Brown once said
black and deep as the sky at midnight
and I know he deserves this love
and I know I deserve this love
and I know there is no danger in this black
black love
True true love, love
Sweet sweet love, love
Trad.: eles me disseram para não amar nenhum homem negro/porque amar homens negros é perigoso e/se eu escolher um homem negro/eu provavelmente terei que me agachar em em frente a um espelho para visitá-lo em breve/e meus filhos irão certamente nascer negros como nós também// eles me disseram que homens negros são violentos e cometem crimes/ que eles nunca são bons pais/e sempre/traem/e mentem//mas então eu ouvi aquela canção no rádio/na qual o cantor fala//verdadeiro verdadeiro amor, amor/doce doce amor, amor/me segurando assim com amor/me mantendo assim com amor//e desde então eu sei que estou apaixonada por esse jovem homem que conheci/e ele é tão doce mesmo/ sendo negro//negro e doce como jaboticaba/negro e orgulhoso como James Brown disse uma vez/negro e profundo como o céu à meia-noite// e eu sei que ele merece esse amor/e eu sei que eu mereço esse amor/e eu sei que não há nada de perigoso nesse negro/negro amor//verdadeiro verdadeiro amor, amor/doce doce amor, amor
---
Segundo os pescadores de Três Marias
o curimatã piau é o mais comido dentre os peixes do Velho Chico.
Ele próprio só se alimenta do lodo, da lama e da terra do fundo do rio e,
para isso, tem dentícios
na mandíbula pequena de peixe:
é perfeito como a água do rio e
tudo de aquático que há ao redor dele.
Apesar das muitas espinhas,
o bamba piau pode pouco contra seus predadores, e
as barragens e transposições aceleram sua derrota,
na batalha de vida e morte que enfrenta enquanto desbrava,
minúsculo,
o imenso São Francisco.
Seu Zé conta que, às vezes, quando um pescador pesca uma xira,
fica com tanta alegria que não repara qual pescou.
Só ao chegar em casa se dá conta e, então, chora
sobre o corpo escamoso e solitário do curimatã pacu,
a morte de cada um dos curimatã piau.
São primos próximos, os peixes,
mas seu Zé sabe do rio,
sabe do mar,
toda a vida foi pescador.
Ele conhece de longe o turro do curimbá que antecede a desova e
cuja frequência de gozo e vida
os homens da cidade só conseguem sintonizar se
munidos de aparelhos digitais e hidrofones.
As cadeias alimentares dos bichos do Velho Chico,
o ciclo reprodutório dos bamba piau e
as condições térmicas e hidrodinâmicas de que ele depende,
tudo isso é redondo,
como a Terra.
Deus habita o interstício de cada ciclo,
tem escama ao invés de pêlos, e portanto
não padece do ciúme mamífero que
atormenta os cães e homens
---
pq mesmo morando longe da minha família no dia do meu nascimento estavam tia avó avô tio; pq tiveram de me dar duas madrinhas para q coubessem todas; pq não aguentavam + ficar em casa por causa do bebê mas então fizeram uma fotografia bonita y esse dia virou para sempre o dia q eu conheci o mar; pq sempre me senti + profundamente eu qdo no meio das dez ou + me apontavam y diziam -essa é a da deusinha-; pq dormíamos todos os 10 ou quase numa cama só; pq tive amizades tão profundas q seriam capazes de estraçalhar o mito do amor romântico d uma vez; pq por causa de e* de l* de p* não me senti só naquele lugar naquele estado naquele prédio ou naquele país não perdi a cabeça d vez; por causa de i* de b* de m* acreditei na minha escrita; pq as vi costurarem à mão os livros umas das outras; pq meu melhor amigo no meu primeiro emprego era um homem d cinquenta y oito anos q me dizia sempre p nunca parar d estudar; pq apesar das tristezas y pequenas raivas meus ex amores (d verdade) foram sempre amáveis; pq apesar d todo o ódio todo o ódio que sinto diariamente y d todo o medo y do amargor eu sei do projeto colonial em curso q quer nos ver infelizes; pq apesar da escravidão do genocídio do projeto racial d miséria apesar disso tdo eu cresci em lares abundantes em matéria y amor - ainda q o amor não fizesse parte do vocabulário; y qro aprender a ser gentil sem deixar d ser forte
Negra
Para Noémia de Souza
Para espoliar meus encantos foi que me criaram
animalesca
selvagem
cruel
sedutora
exótica
bruxa
perigosa
indomável:
fêmea
E me chamaram África
E me pariram mãe
O povo estranho
com seus olhos cheios de outros mundos
levou de mim
quase tudo
Doeu mais ver esse estranho nos olhos de
meus próprios frutos
Sangrei:
e assim se fez o Atlântico
derecho a la consulta previa
el território cuerpo és el más afectado en el sistema hegemónico
eso me enseñaron dos hermanas wayuu
desde entonces
he abolido el uso de verbos cartográficos
para hablar de nuestro encuentro
no quiero explorar tus curvas
descubrir tus marcas
radiografar tus trazos o
penetrar tus orifícios
no quiero investigar
sondar
describir
catalogar
colonizar tu cuerpo
para lo que deseo creo que
todavia no hay nombre
en esas lenguas europeas
que son las únicas que tengo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀Trad.: o território corpo é o mais afetado no sistema hegemônico/ isso me ensinaram duas irmãs wayuu/desde então/aboli o uso de verbos cartográficos para falar de nosso encontro/ não quero explorar tuas curvas/ descobrir tuas marcas/ radiografar os teus traços ou/penetrar teus orifícios/não quero investigar/ sondar/ descrever/ catalogar/ colonizar teu corpo/ para o que desejo acredito que/ ainda não há nome/ nessas línguas europeias/ que são as únicas que tenho
Clarissa Macedo
Bahia - NE
Clarissa Macedo é doutora em Literatura e Cultura, escritora, revisora, pesquisadora e professora. Apresenta-se em eventos pelo Brasil e exterior. Integra coletâneas, revistas, blogs e sites. Publicou O trem vermelho que partiu das cinzas, Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Nacional Braskem da ALB) e O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição. Está traduzida para o espanhol e o inglês. Já integrou o Arte da Palavra (SESC). É a idealizadora do Encontro de Autoras Baianas – Marcas Contemporâneas.

Poemas
Pescaria
Na fila de emprego
me deram uma vara de pescar.
Contrariando as profecias,
não conquistei o universo.
Não havia isca
não havia lago
não havia nada.
Os peixes sumiram (!)
sugados por quem já sabia pescar,
por aqueles que pescam de família em família
com o mar à mão
e dedos ensinados;
será que têm varinha mágica?
Será por isso que não pesco?
Há tempos desato o ofício da pescaria
e nunca dá certo.
Faz anos também
que o cheiro do peixe invade as paredes, o catre,
os sonhos, a minha oração.
Eu continuo: persisto,
de anzol gasto,
no exercício de dar de comer
à mãe, às filhas, às irmãs;
mas todas minguam
na tarefa diáfana
de enganar a fome
de soletrar a morte.
Por isso, no auge daquele dia,
convencida de que pescar
sem isca, peixe ou lago
não enganaria a dor, a miséria,
amarrei a linha no tronco mais rijo;
e lá, de corpo pendurado,
olhei pra sempre o açude vazio da minha casa.
---
Noturno n. 4
À noite,
No descanso das injustiças e das fraquezas,
Eles decretam no palácio a tua próxima fome.
Quando amanhece, o sol não nos fala
Nele, uma cortina de 100 dólares ponta de estoque
Em nós, o medo e o mito do silêncio.
Bronze o dia as aflições pelo trabalho e pelo sono
E quando enfim madruga e a jornada de tantas horas parece que chega ao fim
Eles dizem que haverá mais
Que haverá mais porque é preciso cansaço para os nossos olhos
É preciso sangue
Para que não se possa meditar
Para que sigamos
Máquina aos moinhos
A moer tudo aquilo que somos, tudo aquilo que não podemos ser.
lampejo
quando navego nos itens do supermercado
no afago de suas prateleiras
sinto como se a guerra fosse aqui
aquela grande guerra esperada pelos povos
onde cada um monta sua torre e arma aos inocentes
onde deus salvará os bons da escória
onde o bom sou eu e o mau, o outro –
esse monstro que deveríamos amar mas não podemos
; e não o fazemos em nome do pó das armas que nos protegem da mão do filho –
do filho do outro a nos pedir comida com os olhos
de água.
meu deus, por que não me abandonaste no ventre à míngua da mãe
que morreu de parto na última ceia?
(mulher que abortou 20 eus abençoados pelo livramento do existido
e que não teve pai, mas um falo numerado)
deus salve a américa
deus me salve de mim olhando o preço da azeitona
meu último luxo interior que não poderei levar desta vez
me prometendo levar da próxima se o açúcar baixar
mas ele não baixa, não é? ele não morre, ele é duro.
preciso mesmo reduzir o peso, diz a revista, a publicidade...
eu e minha voz interior nos dirigimos à fila
nos despedimos do sonho de comer
aquelas coisas que a última classe não deixa
e pagamos com 200 reais os cinco itens necessários à manutenção da existência na fábrica.
...meu sonho acaba...
como se não tivesse nascido
como se jamais eu houvesse pisado os pés no éden e na terra.
Desconhecida
As utopias acabaram
em nome da televisão,
um erro feito
pelo preço do petróleo
Eu te amo, tu me amas
e o verbo já não pode mar
Em nome de Cristo
muitas guerras foram dadas
em nome da dívida
uma tristeza no tronco do país.
Todos os mestres morreram
e na tua carne se desenha
traços que inauguram um título
baralho aberto no avesso da palavra,
asa feita de corpo e de coragem
O mundo agora
cruza um lago sem memória
e em alguns anos
estaremos mais pobres
mais burros
mais tristes
na alma
e no prato ( )
Cresce um rasgo
em massa e sem história
na palavra-passe chamada pátria –
essa nódoa, essa traça
esse vazio imenso do nome
no mito de um tempo chamado aflição.
---
o evangelho segundo a cotação do dólar
para Nílson Galvão
o padre-pastor, que levanta a calça do menino com o novo testamento em punho, chora feito criança quando vê a cara do dízimo na bolsa de valores em ações da santa amada igreja que veta a prole do terceiro sexo, que treme o cajado na escola dominical e aperta o cinto que bateu na mulher em casa porque ela fez o café errado. ⎯ deus, esse homem! me dá sua camisa de sangue, por favor, mediante boleto bancário, e ficarei curada da doença, da chaga, da dor do que ainda resta de mim, esse punhado de fantasia e fé que só teve da vida a rima da ilusão.
Hosanna Almeida
Bahia - NE
Hosanna Almeida é soteropolitana e graduanda do Bacharelado Interdisciplinar em Artes pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Integra projeto autoral intitulado música do mundo. A anatomia dos parênteses (2020) é seu primeiro livro de poesias pela Editora Urutau.
latitude: -12,9527438 / longitude: -38,4866028

Poemas
bichos bilhões
todo o dinheiro do mundo
não passa dos duzentos mil
pense um pouco
bilhões é um par
— de milhões
e milhões já são grandes
demais
para caber em carteiras
eletrônicas
não dispomos dessa tecnologia
por isso precisamos da ajuda dos suíços
eles inventaram
os bons queijos
os bons chocolates
e
as grandes carteiras
de bilhões
mas desses
só os bilhões
não são verdade
quem precisa de bilhões?
(dá medo)
eu poderia
brincar de bicho papão
com minha filha catarina
e ela apelidaria o monstro
de
bilhões
nós correríamos pela casa
que não é de bilhões
fugindo dele
“e como ele é?”
o grande bilhões
tem muitos olhos
como bolas de bilhar
escorrem gosmas
viscosas
da sua boca
ele nem grita
só resmunga
ghaaaarrrrrggghhhgggg
ininteligível
assim como
bilionários
bilionários
são amigos
dos monstros
de olhos de bilhar
eu disse à catarina
fique longe deles
melhor
não se torne um deles
(ela não vai
até parece que seria cabível
catarina me deu sua palavra
bilionários são
em geral
homens
grandes
e brancos — eu deveria avisar catarina
ela é mais uma criança pretinha
e crianças pretinhas não
pegam amizade com
bichos papões)
merarias
ensina
da terra, a voz
suplica aos galhos
[em nós
que ainda rugem
celebra
à terra, semente!
em tua morte ligeira
[ladeia
A canção da árvore antiga:
“e ainda que caia de si a folha
resta o tronco
resta o tempo
resta o corpo,
resta a raiz.”
nestes versos o sentido da vida
água viva não é água em cerca
água em cerca não é água viva
água em cerca até mata a sede
mas o gosto é férrico e febril
água viva morreu dez vezes
se embolou umas vinte
se perdeu e se achou
antes de sair correndo
o fim da água viva é parar um pouco
pra descansar
e depois, corpo adentro
recomeçar o circuito
o fim de toda água em cerca é virar água viva quando jogada na pia
morrer dez vezes
se embolar umas vinte
se perder e se achar
e depois
sair correndo
historie de la folie
mugindo lá vai a louca desvairada
rasgando dinheiro comendo cocô
perdeu-se tão feio tinha candura
foi o mesmo com Alice da rua 6
era menina mulher exemplar
mas desde que ela se deu ao
desfrute
urra corre muge sem parar
vai às ruas ensandecida
a lua lhe afeta anda
perdida largada
e sozinha como
uma qualquer
“contemporânea”
tiro o pijama às 4 da tarde
depois disso continuo dormindo.
vivo o normal intranquilo
desperto quando dá
deixa
O tempo matura
esta tortura
que de bom grado
te voluntariaste
que rompe a aura
que cutuca a alma
que enferma o peito
e, suplicante
o ensejo
num sussurro consente: deixa
desnuda-te, desejo febril
imerge na calidez da urgência
contempla no desespero da ausência
a iminência de um instante
deixa, só deixa
eis na faisca, centelha
queimar a efêmera certeza
que vai
Juliana Pithon
Bahia - NE
Juliana Pithon nasceu em Vitória da Conquista, na Bahia, em 1995 e mora em São Paulo desde 2014. É poeta e jornalista pós-graduada em Gestão de Projetos Culturais pelo Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação (USP). Tem poemas publicados na Revista Torquato e nas antologias Prêmio Poesia Agora (Editora Trevo, 2020), Só a poesia Salva (Editora Primata, 2020) e Tomar Corpo (Editora Jandaíra, 2021). Seu livro de estreia, Banana Feijão, selecionado pela Editora Urutau, será lançado em breve.

Poemas
I
rezar pelas vozes e sombras
incorporar as correntezas
escalar as pedras e pular
da beira do corpo
até sumir na água
enquanto troco
no fundo do rio
os velhos olhos
pelo que dança na língua
---
II
ao encontro do rio com o mar dá-se o nome pororoca
e nele
[enquanto eu contava as suas costelas
deitada na sua coxa]
encontrei um coração-baiacu
---
III
uma voz sai do
vazio feito grunhido
de barriga com fome
eu como pra sua chegada
e faço oferenda em gamela de barro
pra você ficar
essa menina ainda vem fazer visita
chora, faz birra
é faminta
e vai lá em Dona Nana
pra Joana abençoar
- tá encapetada
a vó gritava
ainda não é setembro, mas hoje é dia de gira
se você vem, tem caruru
dos sete, o primeiro é seu lugar
senta na roda,
come com a mão
e canta o ponto das camisas
pelos erês que fomos
mesmo você sendo
santa do pau oco
eu agradeço
a força desse congá
aqui dentro
IV
os passantes cheios de saudades
quebram as pontes
para nadar com os peixes
sujos
que vivem entorpecidos de São Paulo
cidade feita pra não olhar pra cima
---
V
aqui nesta nova Terra
quando uma coisa é muito inesquecível
costumam compará-la a andar de bicicleta
eu nunca aprendi
e lembro-me quando minha mãe foi tentar aprender
já mais velha
e desistiu
talvez por isso
esquecer sempre foi nosso forte
Larissa Rodrigues
Bahia - NE
Larissa Rodrigues, natural do município de Feira de Santana-BA, é preta, poeta, professora, pesquisadora, mestra em estudos literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana, milita junto ao Coletivo de Empoderamento de Mulheres – FSA. É co-mediadora do Leia Mulheres e co-produtora do Ciclo de Oficinas em Escrita Criativa em Feira de Santana. Já publicou seus versos em antologias, especialmente as da Diabo A4 e, vez em quando, venta em http://larigerbera.blogspot.com

Poemas
Regresso
Minha pele cria memórias
das estradas que vivi
porque danço macia
nas águas
meu coração cria memórias
que meu corpo não percorreu
ou o ainda pulsa firme
nos dias que desconheço
minhas mãos criam memórias
de constelações não calculadas
até que eu,
enfim possa,
me perceber (ou receber)
inteira.
---
Cicatrizes
Às vezes
As chagas de meus ancestrais
me assaltam a noite.
Desejo como pesadelo aquilo
Que soa lembrança na minha carne
Preta, vermelha...
Palavras e coisas em trégua por instantes
Para que outros e outros e outros
Universos sejam criados
E eu, enfim possa esquecer tudo novamente
Mesmo que me venha à boca o gosto da perversa pergunta:
Até quando?
---
Onde coloco meu corpo?
Nas ruas estreitas da culpa
Nas vielas do vazio
No oco mais profundo
Onde coloco meu corpo?
Na palavra que rasga
A pele da verdade
E a voz que pulsa
É das sombras de si
Onde coloco meu corpo?
Ele percorre caminhos
Que despedaçam certezas
Que desterram canções
Que despetalam cruezas
Onde coloco meu corpo?
Na janela das ausências
No fôlego das nascentes
No instante-contínuo
Da porta de entrada
De um corpo-casa.
Bem vinda.
Eu sou uma mulher negra?
Procuro no espelho
na história
nas raízes
traços
trajetórias
nos tons
nos meus silêncios
silêncios alheios
e aprendo
[quase sempre]
a ouvir.
E calar junto.
E gritar junto.
Persigo a resposta
espero a cicatriz
lembro
[quase sempre]
Que o que me rasga
É a pergunta.
---
Ninguém perdoa as mulheres negras
Não há como nascer palavra
Onde é plantado silêncio
Nem nascer afeto, abraço
Onde é plantada violência
Falta pele areia fina
De onde se apagam todos os erros
Em eternas ondas coloniais
O riso, a pólvora, o medo, o chicote
Cantam em coro canto de morte
Canção de ninar capital
nada que te lembre humana caberá no poema
A mãe do menó amanhecerá amena
no lombo o vazio peso
Dessa coisa-vida.
Não há perdão.
Ninguém perdoa mulheres negras.
Letícia Simões
Bahia - NE
Letícia Simões nasceu em Salvador, em 1988. Formou-se em Comunicação na PUC-Rio e estudou Roteiro e Documentário na London Academy of Film, Media and TV e Artes Plásticas na London Art Academy. É mestra em Cine-Ensaio pela Escuela de Cine y Televisión de San Antonio de Los Baños, em Cuba, e mestra em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
latitude: -12,9289312 / longitude: -38,5195626

Poemas
Aaron
ainda creio em sinais
ainda que esteja difícil
encontrá-los
nos tempos de hoje
ainda creio nas sombras do universo
aquelas que dançam entre dez da manhã e uma da tarde na parede do quarto
projetam uma cidade desconhecida,
um pavão em um giro mortal
(quem diria, pavões também executam à perfeição
saltos de ginástica olímpica:
são sinais)
o historiador americano aaron saachs
escreveu que a maior qualidade dos primeiros exploradores
era dominar a arte de se perder:
no fim das contas,
conhecer seus instrumentos e
ter algum otimismo em relação
ao caminho por encontrar
ainda acredito em deixar a porta aberta
quando invisíveis nadadores transpassam
o meu corpo
atravessam com a luz
trazem a sede de amor e água
que somente pode existir no verão
são sinais
ainda que esteja difícil,
nos tempos de hoje,
crer em suas
aquosas e milagrosas
existências
ainda acredito nos diamantes inventados pelos homens
não os encontrados,
reluzentes, perigosos
mas aqueles feitos pela língua
(cuidado, o perigo é ainda maior):
tropical,
navio,
cumbuca,
nefasto.
um amálgama de inesperados sons
que requer nada menos
do que a nossa vida
dois cavalos
depois de uma larga e estupefata corrida
quando cansados
se reconhecem em suas derrotas de cascos
e coices
e erguem as patas
dançam em uma língua eqüina
o exercício de buscar justamente
aquilo que lhes é desconhecido:
não há derrota para os cavalos,
somente a corrida.
uma vez tentei acreditar nos sinais de cortejo
de uma alma diante da outra
em tempos de guerra de calendário
mas fui obrigada a reconhecer
os muitos mais cortejos das almas infelizes,
versadas em vestidos costurados de manhãs frustradas
esses não são sinais.
como reconhecê-los, então?
pensemos nas gaivotas
que em suas barrigas guardam o segredo do futuro
pois bem
agora, quando estiver sozinho ao mar
e avistar uma gaivota
observe bem seu branco dorso
nele estão todos os sinais
num tropeçar,
ela abre vôo
voa
voa
voa
traçando um arco infindo de perder-se
mesmo estando em casa
(o maior sinal).
Agora, os cavalos
poderia segurar a sua mão mas tenho medo que ela desmonte
de súbito
pelo toque fraudulento da minha
não há mais espaços para dançarmos; ainda assim
vão-se lá pernas e tecidos e membros ocultos
com algum álcool no sangue,
tentamos, com muito fervor, repetir frase a frase o discurso tão revelador
da madrugada de quinta-feira
agora sequer lembramos do que falava mesmo
talvez fosse
aquele panfleto ordinário que um hippie qualquer
nos entregou - com raiva nos dentes, quando lhe negamos moedas na mesa da rodoviária
lições retiradas de um manual para aprender a comunicação com cavalos: (o curso completo pode ser entregue na sua casa a doze parcelas mensais)
- não olhe para baixo mas sempre para onde se quer ir;
- não retenha a respiração, para ficar mais descontraído;
- ao segurar as rédeas pense que leva um passarinho nas mãos;
- agarre-o para que não fuja mas não o aperte para não o magoar;
- ao galopar tente captar o movimento com a cintura;
- um bom cavaleiro, apesar de parecer que está quieto, sempre acompanha o movimento.
Dentes
assim como conheço uma cidade
pelo peso do meu corpo
quando sou levada pelas minhas coxas
por uma esquina que deságua em um supermercado
onde certa vez roubei um sanduíche
- eu que nem gosto de pequenas porções amontoadas com pequenas porções
gosto do inteiro, mesmo que doa a boca -
pelo mero prazer de me saber capaz
de esconder insignificantes segredos,
quando os grandes caem todos pelos dentes.
(adoro dentes.
acho-os fascinantes.
pessoas de caninos prontificados gozam de palavras fortes.
pessoas sorrateiras costumam fazer clareamento.
as sedutoras também,
mas elas vão em dentistas mais baratos.
gosto de quem tem dentes tortos,
geralmente são alcoólatras.
também gosto de quem usa aparelho tardiamente,
parece uma brincadeira com o tempo:
caber onde não pode.
ou poder onde não deveria.)
assim como conheço uma cidade
pelo peso do meu corpo
conheço o peso do seu corpo
carrego o peso do seu corpo
como o aprendiz de joalheiro que esteve um ano com uma safira agarrada ao punho
para sentir o exato vazio de quando se ela foi.
conheço o encaixe dos seus braços,
um abaixo da axila, o outro acima do ombro
a sua perna esquerda buscando a minha cintura.
quando você está em dúvida, seu olhos mudam de cor
e quando você me disse para não confiar em alguém com olhos furta-cor
somente lembrei do rio onde consigo chegar sem mapas
mesmo anos depois de ter deixado a cidade,
mesmo de olhos fechados,
porque até os rios pensam que podem equilibrar o inferno,
- os corpos, não.
Lorena Grisi
Bahia - NE
Lorena Grisi nasceu em Salvador. Publicou Exercícios físicos em 2021, pela Editora Paralelo13S. Em 2020, foi uma das selecionadas em concursos literários e no edital Arte como respiro, do Itaú Cultural, na categoria poesia escrita, tendo o poema publicado no caderno digital onde caber. Tem poemas publicados nas coletâneas Hilstianas vol. 1, Antologia Ruínas, Mulherio das Letras Portugal, entre outras.
latitude: -12,8754716 / longitude: -38,5016508

Poemas
Exercícios físicos
Faz atividade física? Faço, longe de mim ser sedentária. Não fumo, bebo pouco e carrego comigo este carma de gerações, estes genes, o peso dos dias, esta cabeça que não vem sobre os ombros, vem sobre o pescoço, porque os ombros, é o mundo o que eles suportam e por isso tenho hipercifose. Não sou preguiçosa, ando a pé por essas ruas levando tudo o que é desnecessário em minhas costas, só para ter certeza de que não vou utilizar, mas está tudo ali, são coisas minhas, é tudo o que tenho, pode-se dizer que configura um patrimônio. Juntei cada uma dessas peças como quem guarda pedaços de quebra-cabeças distintos na esperança criativa de montar paisagem própria, forçando encaixes e aceitando que buracos são também composição de destinos. Portando sempre meus objetos, sou meu meio de transporte, meu caminhão de mudança para cada apartamento semimobiliado alugado e, no percurso, perco bibelôs e memórias, o que deixa mais leves as caixas de papelão e é por essa razão, ademais, que eu sempre fui bem magra, embora nunca, nunca mesmo, tivesse sentido medo de que uma ventania me levasse consigo. Tudo ótimo enquanto estiver perdendo bibelôs, o que não dá é para perder as chaves, a cabeça ou o prumo. Eu sou muito ativa, me exercito, escrevo, apago, escrevo, reviso; no ano seguinte, eu abro o mesmo texto e reviso, apago, escrevo, guardo, esqueço. Esse exercício fortalece a mente e os ossos, explico, ele recomenda musculação três vezes por semana, no mínimo. Pergunto se ele já experimentou um teto desabando sobre si e tendo de levantá-lo com as mãos, no sentido oposto à gravidade, e isso na hipótese boa, que é a de ter um teto; ele me diz academia, corrida, pilates, eu digo meu querido, você não faz a menor ideia do que é ser uma mulher.
cardiorrespiratório
(com influências da reflexologia)
três mentiras:
alamedas
tese, antítese, síntese
uma artéria longa e livre
começando no coração
e se ramificando
num complexo de túneis
espelhados nas linhas da palma da mão,
que dizem: viverás tantos anos
quanto estiverem desimpedidos esses túneis
subterrâneos
subcutâneos
e o tráfego for ordeiro, polido,
quase um tráfego oriental,
em velocidade média de um quilômetro e meio por hora,
às vezes menos, não há motivo de pressa,
é tudo uma questão de transporte de cargas,
mais que isso é acidente, previsto
na palma da mão, nas fibras da íris,
em pontos da sola do pé que,
novamente, só os orientais
atravessam a existência conhecendo, apertando e
rindo da desgraça alheia
convertida em tráfego engarrafado a todo o tempo
esse não chega nem aos cinquenta
com tão pouco combustível e essas bobinas
desconectadas
os orientais leem o grande livro
escrito no calcanhar de um analfabeto
especialista em geradores de energia elétrica
de edifícios de cem andares
que não abrigariam nem a ele,
nem aos seus filhos, se sua casa desmoronasse,
se a cidade inundasse ou se toda a sorte de líquidos
se misturasse e desalinhasse a arquitetura dos túneis
e dos pequenos canais, denunciando as imperfeições,
as obstruções, os nódulos, os coágulos, os excessos
cometidos em 2014, as marcas, os registros,
as mentiras, que estão todas lá, bombeadas por um músculo,
setenta vezes por minuto elas circulam do pé
à cabeça, os orientais sabem,
eles estão lendo no centro do calcanhar e na divisa
da planta do pé com o dedo mindinho,
eles estão gargalhando da crença em bosques e álamos
no meio de uma cidade da América do Sul,
da crença em corridas, maratonas,
basta um quilômetro e meio, não há motivo de pressa,
e pode-se respirar aliviado, pois não há nada de novo nas artérias,
nem nos próprios orientais, eles até se envergonham,
é que as mentiras já foram todas inventadas.
Cartografia
No canto da tela com o mapa,
há uma escala de grandeza que diz
1:300.
Cada trezentos metros do meu caminho estão reduzidos a um centímetro, nessa escala de grandeza cartográfica.
Acho engraçado dizer escala de grandeza.
Eu poderia falar: Numa escala de grandeza, eu parti o pão e te deixei o pedaço maior.
Se diz também está para, na leitura das escalas: "um está para trezentos".
Esses trezentos metros foram reduzidos
para que, no caminho,
eu não desvie o olhar,
para que eu esteja para,
ou o objetivo de chegar
não se cumpre.
Na física quântica,
o lugar existe enquanto eu olho para ele.
Ele está para mim,
reduzido à escala de minha retina,
que é de 1:10 metros de visão frontal e periférica.
Para mais que isso, o mapa
e a grandeza de encerrar o que não existe,
porque não estou olhando.
A queda
E se o sentido for o invisível,
o intangível, no ritmo irrefreável
da queda no abismo
místico?
E se o motivo for incompreensível,
antes mesmo do vivível,
sem cor, sem corpo, sem cordas de segurança máxima ou, ao menos, mínima?
E se deus for maníaco-depressivo, bipolar, histérico, esquizofrênico, obsessivo-compulsivo,
quem protegerá deus e lhe lembrará de tomar
o ansiolítico?
E se um outro cometa chegar e a Terra atingir, e explodir,
e eu sumir com todos os meus vestígios e
meus ossos, antes rígidos, agora pífios?
E se as ideias desaparecerem,
e os sonhos, e os encontros,
e os poemas, perdidos no cosmos inatingível
como aquela sonda espacial nunca recuperada e
com uma imagem eternamente indizível?
E o ilegível, e o inefável,
e o inimaginável?
Quem vai tocar a canção
de compositores mortos de amor e de ódio e
de tédio no andamento certo, pianíssimo, fortíssimo, sforzando, se esforçando,
com quais forças, e de onde, com que braços
sem abraços e com o olhar baço
de quem quer o invisível, o intangível,
a clareza do precipício?
Por acaso, acidente, por destino
Quando, ao sair à rua, se encontra o carteiro
em frente ao edifício, em horário diverso daquele
em que ele vem, todos os dias, e ele carrega consigo, além de suor e sorriso,
entrega não encomendada, materializada numa caixa
envolta em mistério e carimbos,
muitos dizem por acaso, coincidência,
por destino.
Mas se à uma da manhã de um dia de férias tranquilo,
em que se dormiu com os anjos, sem conhecer desconforto,
barulho de vizinhos, má notícia, frustrações ou a presença do perigo,
uma árvore despenca e desperta do sono os justos e os injustos,
porque esses últimos também dormem, ao contrário
do que esperam os que creem em narrativas de culpa,
remorso, consciência, paz de espírito, e se a queda dessa árvore acontece
em cima de um automóvel no qual se vê, no banco de trás,
uma cadeira de criança, e essa árvore atinge justa
e precisamente a cadeira ocupada pela criança, que também dormia,
muitos dizem por destino, linhas tortas, fatalidade, desígnio.
Quando a cabeça lateja, quando o corpo não responde
aos seus comandos, quando a necessidade é encolher-se num canto
escuro e fazer uso de comprimidos esteticamente perfeitos em suas formas,
como se esculpidos, circulares em cada uma de suas miligramas,
e ingere-se um, e mais um, e mais um, e mais um porque
não se está acostumado com isso de raciocinar em miligramas,
multiplicar as miligramas, não se está habituado à matemática
dos compostos químicos, no dia seguinte, é previsível,
tocarão a campainha e, não sendo atendidos,
eles dirão acidente, descuido, imprudência,
desatino.
Numa fábrica qualquer, pouco importa em que país,
posto que fábricas são territórios indistintos como aeroportos,
igrejas, desertos, submarinos,
nessa fábrica qualquer, próximo ao fim do expediente,
num dia de alta produção e de funcionários felizes
como só são aqueles úteis à sua tribo,
um vazamento de gás asfixia homens e mulheres que vestiam
uniformes iguais e morriam iguais e as explosões que se seguiram
foram exatamente iguais ao bombardeio da Líbia
em 1911 e muitos disseram, incluindo a igreja,
o dono da fábrica, os marinheiros e os beduínos,
do descaso, coincidência, acidente, negligência.
Ao dizer acaso, recorrentemente, se referem ao pássaro
que fez ninho na calha do telhado e cujos ovos serão chocados
no dia do aniversário do velho senhor dono do imóvel,
ao que também chamarão de coincidência, sincronismo, entretanto,
se o velho senhor odeia pássaros, preferia morar num apartamento
no centro, é exímio caçador e é por aves faminto,
chamarão de acidente, cadeia alimentar, fatalidade, fortuna,
que é o que se diz, recorrentemente, de quem elegeu seu alvo
e dele decide a ventura.
Lorena Kalid
Bahia - NE
Lorena Kalid nasceu em Itabuna, na Bahia, e chegou em Brasília há 7 anos. É servidora pública, mestre em Literatura e escritora de Voal, seu primeiro livro de poesias. Também é sócia e fundadora da Taipa, editora independente voltada ao incentivo da escrita e do debate sobre criação literária.

Poemas
Duas mulheres se olham
como adivinhassem quase
que raro grave rugoso
se frouxo ou em mora basta
contraírem nos lábios
etéreos risos trincados
na seriedade rota
Mal amoldadas no alto
de suas bambas trípodes
estalam duas mulheres
na brasa, sinteco, o beijo
articulação de escolhas
para tantos quantos dirão
de que vale o alvoroço
---
em termos
sua voz sabe tantas
coisas que só
ouço
sou só
ouvidos
ouço, ouço
o espinho do silêncio acaso
aguda murmuro em dias
de desleixo
esvazio
viro ouriço
agulhas alinhavam a boca
em letras caligrafadas
nos lábios, bem caprichosas
pelo reflexo enxergo enfim
bordado oco
o recado óbvio
ou segue calada
ou muda
Drummond e este barulho
todos sabem que o mundo
não passa de empresa anônima
reciclando caixas e vidros de azeitona
merthiolate o som das duas unhas
que se enfrentam todas as imagens
vulcões os rapazes tão confusos
com seus sedans suas babás seus bebês
um pouco de suas queixas nas queixas
de suas filhas vociferantes o pó
trazido das ruas nas botas de viagem
e os fios claros e finos do cabelo
de minha vó todos sabem muito
este queise clássico de saber
tão inefável quanto inútil
Maria Luiza Machado
Bahia - NE
Maria Luiza Machado é escritora, poeta e editora baiana. São três livros publicados: Algumas Histórias sobre a Falta (Edição da autora, 2018); Todos os Nós (Penalux, 2019) e Tantas que Aqui Passaram (Mormaço Editorial, 2021). É editora da Mormaço Editorial, pequena editora independente lançada em 2020. Organizou a antologia Corpo que Queima (2019), que reuniu 41 poetas baianas.

Poemas
Jenifer
não sabia que seria preciso
explicar para o mundo
que naquele momento
só queria definhar em seu silêncio
sem ouvir teorias a respeito
do que ainda nem se sabe como
mas aconteceu
só quero morrer em seu próprio silêncio
dizia
e não se importava mais em saber o
motivo para toda essa gente achar
que a falta de palavras ou ruídos
era algo tão ruim
silêncio é silêncio
é o que é pedido em templos
igrejas
bibliotecas
laboratórios
em todos os lugares em que são necessários
alguns minutos
no mínimo
de contemplação
só queria contemplar a si mesma
diante do que tinha se aberto em sua frente
e ainda não sabia como trancar de volta
---
Não me ensinaram
quantas vezes
quantas vezes mais
os gânglios da garganta
precisarão acordar
inchados
junto com o corpo quente
apesar do mais sofisticado dos termômetros
apontar a temperatura ideal
pergunto,
a quem estiver ouvindo
enquanto me olho no espelho
para me acostumar
com os movimentos dos meus lábios e o som
que entrará em meus ouvidos repito até o dia
em que conseguir pronunciar sem maiores
esforços ou culpas
muito menos melancolias posteriores
um simples e sonoro
não
não
não
não
não
repetir mais 3 séries de 15
---
Rafaela
as fibras que compunham
o tecido de sua roupa
de repente pareciam
tão
tão frágeis e transparentes
ali, naquele meio de noite
naquele meio de rua
já tão conhecida
— sabia até dos buracos da calçada
e da posição dos paralelepípedos
soltos da pista
cadê a luz dos postes
dos carros
da lua
de deus?
desconhecia de repente o ar que respirava
entre correr e chorar
ficou com o segundo
— cair por causa dos saltos altos
estava fora de cogitação
preciso fingir que sou invisível
preciso fingir que são invisíveis
pela volta das lâmpadas incandescentes
já é escuro e esqueci
que no fim do corredor tem uma mesa
com a quina toda virada pra onde é
passagem; ainda não achei melhor lugar
pra colocar esse pedaço de madeira velha.
mas que bom
que nas últimas vezes
as crises têm acontecido nesses
horários, já sem luz.
sair do quarto num dia quente
e me deparar com as cortinas
que ainda não existem penduradas nas
janelas seria como ser engolida
por lâmpadas fluorescentes.
eu já fui engolida por algumas,
que me mastigaram e cuspiram de volta.
não foi uma boa experiência
- acredito que nem para elas.
devo ter um gosto muito ruim.
nem me importo mais com a dor
do pé da barriga por causa da quina.
o bom é que ela é aguda,
que nem me disseram que é uma
apendicite, e faz com que eu me distraia até
chegar ao armário de remédios.
de todas as decisões que tomei
para a mudança dessa casa,
a mais inteligente
foi projetar o tal armário
do tamanho que eu tenho direito.
eu preferia estar tendo uma crise de
apendicite.
ainda não decorei o formato
de todos os comprimidos,
só mesmo o do Sumax.
a vontade é de engolir logo uns três,
mas tem tanto comprimido aqui
dentro que é impossível de achar.
não quero acender as luzes.
não sei quem inventou
de tirar do mercado
as lâmpadas incandescentes.
elas pareciam me engolir
com mais gentileza,
às vezes nem chegavam tão perto
se eu ficasse quieta
com os olhos bem fechados.
deslizando a mão pela parede,
era um alívio que fosse fria
e o interruptor ainda estivesse
longe. achei.
a lâmpada
acendeu.
fui engolida.
---
siamesas
I.
uma linha
curva
pequena
fina
na palma da mão direita
às vezes perguntam
que foi isso?
é de nascença,
respondo
pra disfarçar o formato exato de tua unha
[sempre achei teus dedos
curiosamente
longilíneos demais]
marca
que ainda cicatriza
demoradamente
por vezes cutuco até a carne
por vezes esqueço.
II.
da época em que tua mão
nunca soltava a minha
um apego
uma corrente
um freio
sempre um não
muitos nãos
olhadas de canto de olho
ou de cima à baixo
começou há tanto tempo
que nem me sinto mentindo
ao dizer:
é de nascença.
III.
até que
cirurgicamente
puxei minha mão de volta
pro meu corpo
quando enxerguei
finalmente
que ela pertencia a mim
[apesar de por toda a vida
você me fazer acreditar que não]
jorrou tanto sangue dali
fiz um rio
vermelho claro
ralo
já que as lágrimas também quiseram
virar nascente.
Mariana Paim
Bahia - NE
Mariana Paim é doutoranda no programa de Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA), integra a linha de pesquisa Lesbianidades, Interseccionalidades e Feminismos (LIF), vinculada ao NuCuS. Além de se dedicar à pesquisa, ao magistério e à escrita, milita no Coletivo de Empoderamento de Mulheres – FSA, é co-mediadora do Leia Mulheres e co-produtora do Ciclo de Oficinas em Escrita Criativa, em Feira de Santana. Publicou serei_as: ou ensaio de um mergulho no âncora (2019) e está trabalhando em seu segundo livro, Ausência.
latitude: -11,9684057 / longitude: -39,1036681

Poemas
(d) o mar
o mar dançando em
nossos pés
teu cheiro roçando
em minha pele
um mergulho em
você que
também trans
borde em
mim
em nós um
corpo inteiro
de palavra fazendo
festa e abr
indo caminhos
pela primeira vez
a primeira vez que vejo o peso
da fotografia sobre a mesa
é também a primeira vez que calculo
e penso que o tempo nunca
é a medida exata da saudade
mas desse espaço
cheio de lacunas
que ficaram entre nós
pela primeira vez penso
em dizer e
as palavras
lacrimejam
travessia
palavra
como
desejo
é
travessia
o não é a palavra mais selvagem
reaprendo a ler todos
os dias e hoje
só sinto
pelo tempo
que foi de mim tirado
troquei os móveis
por espaço
não cozinho, lavo ou passo
e não divido contigo
nem a cama, só
durmo comigo, com
a Florbela Espanca e a Emily Dickinson
moro e acordo nas palavras
e sigo amolando-as feito faca
sendo o não a mais
afiada
the lovers
hoje eu vi uma
fotografia branca,
[como essa página
nela um deserto de sal
preenchia todo o campo
não havia ninguém no horizonte
à vista
sem caminhos
apenas o branco do chão
refletido por todo o céu
talvez seja isso o que reste
o solo estéril
das perdas
em meio as travessias
os planos
os danos
comuns
a paisagem
um imenso vazio
todo branco
algumas vezes é preciso
cruzar a muralha da china
em outras talvez
o silêncio só
já diz
algo como um adeus
Pollyana Sousa
Bahia - NE
Pollyana é baiana de Feira de Santana, se debruça na investigação de suas dores e dos seus, não lembra desde quando usa a linguagem poética, mas o olhar sempre foi minucioso. Curiosidade e memória dão fluxo à escrita e a poesia surge a partir dessas experimentações, o que também se tornou um alívio mental em tempos difíceis. Vencedora do Prêmio Maraã de Poesia 2020, em breve terá o primeiro livro lançado.
latitude: -12,2549307 / longitude: -38,9661469

Poemas
A-vóz
fruto de desarvoramento
não conheceu seus pais
não conheceu seus filhos
não se conheceu
feitio de ama, herdado sem papel
de pouco seio, tornou-se úbere
azada a sorte de ser mãe, tal como se espera
doou um pedaço de si para cada cria
repartida em quinze
reunida em caixa
dor ancestral
culpa cristã.
Tapeçaria
algumas cores de tricô
apara a pisa do pé d'água
recusa a brecha da peçonha
tapeia o cisco do chão batido
arruma a tábua pr'uma madeira pura.
In cômodo
sou incômoda ao seu espaço
chega pra lá, tá me apertando
meu tamanho de gente
medido em massa
torna presença
de elefante branco
eu saio do plano
te dou mais conforto
você sem-te falta
do aperto banido
castelo é mansão
por mãos a palmadas
de volta
re(cinto)
teu nojo
polido
Eu ancestral
marital
esquema
solo
ouvidores
de um tempo eu
marca dores
genéticas
e curas
congênitas
Herança
novelo de mãe
passa de filha para filha
filas
mãos pequenas
recebem a ponta da linha
emaranhada, frágil
sem instrução
reage ao nó
faz o que o mundo diz
xinga, sopra, puxa
enfurecida
descarrega cólera
cansada, lamenta
pede por Deus
lembra que é de mãe
procura nas gavetas
desiste
pega a lâmina afiada
desiste
descarta
emaranha um novo novelo.