Bianca Vieira
Amazonas - N
Estudante de Letras e literatura portuguesa, nortista, amazonense, lésbica, artista, pseudo-cineasta, candomblecista, pesquisadora de literatura de autoria feminina e movimentos culturais. Por ora, poeta.

Poemas
porta copos azul
blusa de crochê cor rosa claro
sem usar sutiã
ou soutien, se a língua enrolar
ritmo, ínfimo, infiel linho
rimado com rímel
nos olhos a cintura
a curva da íris
petúnias no balcão
são fúrias tímidas
tu tem coragem? ou é atuação?
desejo tem olho
cheiro frouxo
o orí tem saúde
mas as cartas que tu jogou me tiram do sonho.
atenção
(se) as minhas mãos fizerem caminho
(caso) o alcance for sim
tem carinho?
minha língua em peão
te ensino como falar
me dá um gole?
o corpo // dose impreterível de metalinguagem
falas sem compreensão
as ruas só são
nuas com buracos
rasgos de pneu e pés
daqueles que se vestem de paixão
que se explica, se come e se nutre
inalando nada que seja true
a boca me pergunta do pão
sem entender o que é fome.
germinar para gritar
consciente da ciência que preza você aqui
sem compreender o latim cuspido nas paredes
mas crente do que virá.
cama sem tatame e grão cor de castanha
costa de constelação
teimosia dos dentes de salame
o que realmente ficou? [agora sou estranha]
ascensão
costuro-me desenhando vestidos
em poemas sáficos nada enrustidos
sua pele brilha amarelo queimado
como lésbica, tenho o hábito de lamber o prato.
clicar nas suas mãos (risinho modernista) só pra perder as digitais
se digo mais?
a insipidez de perpassar seus cabelos soltos
ao córtex, dedico meus dedos solos.
aonde você está? saboreio a quebra do mar
tu me ri nas margens do rio
mergulho,
não podemos ressacar a raiz e o fruto.
enveredei pelo (seu) quadril da cidade
metropolitana, seus cadernos rubros
em verdade
luzes por cruzes e enfim.
de fome não vivi,
depois que soube que tu era gente
se eu dormi?
cílios seus nos meus como eu quis.
pássaros inhos na sua blusa
descompassei trôpega na linha
enganei na cor do vestido que você usa
mas beijá-la,
eu sei bem como costurar.
na beira da cama
I.
o telefone toca baixinho
em claro e o teto de confidente
as paredes enxeridas
investigando outra vez o que eu abafei
debaixo do dente.
no andar do apartamento
o fim do mundo se tornou balela
e eu permaneço inafiançável
dentro da torre de babel.
os pés para cima e os olhos girando
a voz afinada, fora do ponto
teima dizendo
elas estão se amando.
enumero a mistura de tintas
o chão brinca de ficar no escuro
chá frio e biscoito borrachudo
... finda com o vidro que tilinta.
II.
recorro ofegante aos pedaços de rua
que cabem na garganta
para que eu caia no sono
e ocasione nosso reencontro.
o travesseiro imita teu colo e eu pinto a porta
deixar-te entrar
me livrou de estar morta
farta do fingimento que é mascarar.
o que os olhos não mentem
e as mãos insistem em voltar
eu preciso dizer que.
osgas e lagartixas trincam os canos
escapando de modo elegante
sutil e armado
fazendo a entrega do meu recado.
ouvidos cerrados e a boca meia lua
mais que nua
descoberta.
Danna Dantas
Amazonas - N
Amazonense, 26 anos, estuda Letras (UFAM), escritora independente, revisora, gestora de projetos, co-criadora do projeto artístico Urban Cookie: histórias incrivelmente comuns, autora selecionada para compor a edição Sentinela da revista Garupa, e editora e colunista mensal na revista Mormaço. Nascer no interior me levou a escrever sobre os lados de dentro.

Poemas
pra ler ouvindo farewell love song mas não de um jeito triste
esses dias estive pensando
em que coisas os nomes são e com que nomes as coisas se chamam
e daí, em chamar as coisas pelo nome certo pra ter certeza de que não se está mentindo
foi assim que entendi que quando olho pra fora e o mundo parece um abismo imenso, com caminhos demais pra se perder
o que sinto não é medo, é desamparo.
o que você acha que impede as nossas lágrimas de escorrerem todas pra dentro dos olhos? a gente poderia chorar sem ninguém ver.
se eu conhecesse o idioma dos viajantes, teria entendido antes, que passar a vida toda se preparando pro momento em que as pessoas vão embora da gente
não nos protege de nada
se eu andasse menos distraída nos caminhos que passamos
não teria esquecido que você me contou que se despedir é exatamente igual aos seis e aos vinte e seis
eu não queria chorar na sua frente
por isso enterrei os pés na terra para tentar ter o equilíbrio de uma árvore
crescer como uma
resistir aos ventos como uma
conhecer os apelidos de todas as coisas que brilham no escuro, assim como as árvores conhecem
(incluindo os vaga-lumes e os teus olhos contando histórias)
então, volto a chamar as coisas pelo nome certo:
isso que me faz olhar pra fora e ver um amor imenso, eu chamo de você
longe é de onde a gente veio
reencontro é qualquer hora dessa
se eu não olhar pra baixo, o mundo não é abismo, é céu
e a gente tem muitos lugares pra se perder
e tentar e tentar e tentar
rindo do jeito que eu rio quando penso que o reencontro vai trazer o teu cabelo cheirando a mar.
você sabe, não sabe? aqui ninguém nunca precisou jurar que volta
não enquanto no peito couber tanto futuro
tanta incerteza
e a certeza
de que o rio onde a gente nasceu sempre nos chamou pelo nome completo, pra que nunca houvesse dúvida de que que ele falou sério
quando nos jurou
que sabe exatamente onde desaguar.
raso e fundo depende do quanto você cresceu
venham ver, uma criança aprendeu a nadar
seus braços em movimentos contínuos
pairando como fazem os filhotes de encantados
com suas pernas esguias
a pele queimada de luz
e o cabelo escorrendo como o nosso tempo aqui
vejam, os olhos da criança se abrem no fundo do rio
e os peixes dizem olá, como vão os corações despedaçados?
e as algas crescem corajosas
e as folhas caídas se permitem afetar
e amolecer
e se tornar o fundo do mundo
vejam com seus próprios olhos, uma criança se permitiu acreditar
ser atravessada pela correnteza de pedaços de alma
e pela pressa que revira os estômagos emotivos
se tornando antiga
como as mágoas que as águas não deixam ir
e os conselhos que as mães dão
venham ver, vejam todos
uma criança aprendeu a recomeçar
é assim que ela não afunda
descender
por que somos assim?
assim desventura
assim desapego
assim desordem
assim desaperto
nessa família as pessoas vão embora sempre que não sabem o que fazer
assim de repente
assim desacordo
assim de relance
assim desaforo
não fazem o que disseram que fariam, mas tudo bem
eles só prometeram coisas ruins
assim desmentidas
assim desistentes
assim desalmadas
assim decorrentes
é a primeira vez que somos adultos como eles já foram
assim desafio
assim desejo
assim desamor
assim desterro
nessa família o sangue quer morrer jovem mas só consegue algumas vezes
assim deslumbre
assim desencanto
assim desde sempre
assim desse tanto
dez fevereiros atrás
só percebi que o tempo passou quando notei que meu pai começou a contar histórias repetidas como os velhinhos conversadores gostam de fazer
faz dez anos que houve um fevereiro em que saí e nunca mais voltei pro lugar onde cresci e tudo seguiu como se eu nunca tivesse estado lá.
os lugares sempre seguem em frente.
minha irmã voltou
e me contou que tudo está exatamente igual, só que dez anos mais velho.
me deu muito medo de ser assim.
também contou que a cidade inteira tem a tinta descascando de cima a baixo e que a senhorinha que a gente chamava de bruxa deve ser bruxa mesmo porque depois de tanto tempo ela ainda não morreu
nas fotos que recebi, entendi que a casa onde morávamos na infância é muito maior na minha memória do que é na realidade. as janelas altas - que eu precisava pisar no sofá pra alcançar - estão pouco acima do meu umbigo, posicionadas de um jeito meio ridículo.
é pela mágica do mundo que é possível que as coisas sejam grandes e pequenas ao mesmo tempo.
lembro muito daquela casa e fiquei horas pensando porra irmã não acredito que a lua parou de seguir o carro do papai depois que a gente cresceu, aquele gol prata era mesmo especial
não merecia ter sido vendido como sucata depois de um acidente, foi um encanto interrompido cedo demais.
meu pai disse que até hoje não sabe o tamanho do que a gente merece.
ele não anda podendo dirigir.
essa semana recebi uma foto da outra casa, a casa dos treze aos dezesseis, onde os anos pareciam menos mau humorados.
encarei a foto e me senti distante, foi como estar dez anos mais velha também.
só por curiosidade gostaria de saber quem mora lá agora e se ainda deixam crescer o capim-santo no quintal
sequer lembro o nome da rua, mas por um instante fui capaz de voltar a morar nela pra reencontrar todos de quem não me despedi naquele fevereiro que eu não percebi ser o último.
fevereiro costumava fazer as coisas parecerem melhores, do mesmo jeito que a minha memória faz
é por ele que tento fazer com que meus dedos escrevam algo que console a mim mesma do sentimento de que viver é mais difícil do que consigo resolver e me lembre que as cidades que me aumentaram eram pequenas mas tinham nome de fé e de água brava, pura encantaria.
queria perguntar às senhorinhas que ainda acreditam em mágica se é errado acender uma vela pedindo pra não ter que ser forte.
quero viver até encontrar duas garotinhas que acreditem que eu sou bruxa também.
de histórias repetidas eu sempre gostei.
as palavras nascem no leste e se põem no oeste
o dia amanheceu tão bonito que me paralisou.
nunca vi um dia como este.
as pessoas costumam usar a expressão “não existem palavras” quando querem descrever acontecimentos extraordinários
acontece que, dizer que está sem palavras significa ignorar a maior iluminação de todas:
as palavras estão todas aí.
em alguma manhã tão fora do comum quanto esta, haverá uma campainha tocando e uma porta se abrindo em seguida
— bom dia, as palavras se encontram?
— oi! sim, as palavras estão em casa, elas nunca saíram daqui.
as palavras encontram-se.
as palavras existem!
fico a ponto de gritar isso na janela, comentar com as vizinhas, telefonar para minhas tias, enviar cartas que apenas por serem feitas, já comprovam a revelação.
as palavras existem.
em 1979, Cátia de França avisou que há vinte palavras girando ao redor do sol, nos mostrando que as manhãs só existem se falarmos sobre elas.
neste mesmo ano, neste mesmo disco que continha o aviso, houve uma canção com o nome da minha avó. não é assombroso que tenhamos uma palavra pela qual todos nos encontram?
tão assombroso quanto o invento de mecanismos bastante revolucionários, como as portas e as campainhas.
as palavras existem para que as mais velhas contem sobre os dias mais ensolarados, para que possamos desejá-los muito. afinal, não queremos o que não sabemos que existe.
aqui, há uma manhã que clareou doendo na parte de trás dos meus olhos
há um corpo atravessado pela palavra calor.
em todas essas existências extraordinárias
o sol a pino.
Halaise Asaf
Amazonas - N
Halaise Asaf tem 22 anos, é cantora, compositora de rap, poeta e pioneira no projeto Slam, na cidade de Manaus. Estuda Letras na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Organiza eventos e minicursos com temas de literatura marginal e poesia periférica. Luta por uma educação inclusiva e igualitária, para que crianças e adolescentes tenham um real acesso à leitura e à poesia.

Poemas
Racismo
O que minha mãe me contou parece ser brincadeira
tudo que sofreu por ter a sua pele negra.
Como se tivéssemos o poder de definir
e mesmo que tivesse, escolheria ser assim.
Essa sociedade que se diz intolerante
com as formas de preconceito
mas que leva sempre avante.
Eu não quero igualdade, eu quero justiça!
Quantas almas se escodem?
Será que dá para saber?
É homem destruindo homem
sem motivos para fazer.
A não ser a ganância e a exaltação
de acharem-se melhor,
mesmo sabendo que não são.
Veja o nosso futuro, veja a nova geração
inconscientes no mundo,
já nem pedem explicação.
Já desligou sua TV?
Muita coisa acontecendo que você tem que saber
Há dor, pobreza e destruição
e a população mais afetada,
sabe, são os meus irmãos!
Que legado deixaram
quando os escravizados foram libertos?
Lhes sugaram as forças, tiraram a paz
suas vidas foram presas por “direitos” desleais.
O que nos dão agora são uns sistemas de cotas
mas, me diz, paga metade das almas mortas?
Lembro-me daquela apresentadora
do Jornal Nacional
de nome Maria Júlia,
foi preconceito mortal!
Cretinos! Se escondem em fakes
não têm coragem de mostrar a cara
são fracos de argumentos,
não passam de pessoas frustradas!
As lágrimas derramadas dariam para encher o mar,
mais de trezentos anos para poder se libertar.
Se libertarem da escravidão propriamente dita
pois o preto ainda sofre
com essa humilhação maldita!
Mosaico
A vida já me roubou um bocado:
Sorriso nos lábios,
lágrimas quentes...
(Sim! E não frias!)
Frias são as noites que viro cá eu,
com meus pensamentos.
Desejos meus,
medos, ira.
Brota em minha alma,
às vezes,
uma certa ironia.
Uma vontade louca de sabe Deus o quê!
De me jogar?! Será?! Não. Não!
De reviver...
Como uma sombra me perseguindo,
me vem com um sorriso malicioso
a vaidade.
Eu já perdi a conta de quantas vezes sepultei a
humildade.
De uns tempos para cá me despi de umas virtudes,
e me tatuei com outras;
Mas se bem que não são muitas!
Pelo contrário! São bem poucas.
Um mosaico.
Hoje eu sou só fragmentos.
Não de cores, nem de dores,
mas de milhões de pensamentos.
Dores do Mundo
Várias pessoas com as mentes atormentadas,
poucas enxergam a vida em cores,
se alegram com as flores,
se divertem com quase nada.
Em uma fase difícil,
muitos aplaudem o consumismo,
se prostram submissos
e pecado é deixar a TV desligada.
Livros mofando nas estantes,
assim surgem mais ignorantes,
ordenando a todo instante:
"fiquem de boca fechada!"
E se Sócrates foi condenado a beber cicuta
por "corromper os jovens"
por favor me dê um gole,
morrerei cantando a vida.
Discursos de ódio bem elaborados
violação do amor,
algo que é mais sagrado;
Falsos, forçando alegria.
Seja sincero consigo
a vida é bem mais que uma selfie sorrindo,
a vida é guerra todo dia para se ter liberdade.
E se achas que estou mentido
saia das redes um instante,
nota naquele comerciante, vê?!
Repara naquele mendigo.
E se parar para ouvir os gritos do mundo
verás que choram por mais um de seus mudos
que morreu de fome, de frio, por indiferença
seguindo aquela velha sequência
é, a dor não escolhe seu rumo.
E Cândido já bem dizia:
"ler não corrompe nem edifica,
mas humaniza" e isso, eu juro!
Incerteza
Acordei triste,
Intrigado.
pensando no tempo,
que é limitado.
Que foge por entre os meus dedos.
Eu ainda nem o usei direito
e tudo vai-se acabando...
Gota a gota vai-se esgotando.
Vejo a vida indo embora e...
o que fiz até agora?!
(Só vejo o tempo passando...)
Acordei triste, sem motivo aparente.
talvez, pelo mundo,
que anda meio doente.
Pelos amores que morrem a cada lágrima
derramada.
Cansado, me lamentando,
enchi a xícara até borda.
A chuva caindo lá fora e,
dentro do quarto, eu me debatendo.
Pensei no sucesso, na glória,
nas coisas, que para mim,
são monótonas.
Queria esquecer-me no tempo.
Queria me drogar com Belchior até de madrugada!
(ando com a vida meio apertada e tudo me vale um
momento.)
Coloquei a caneta no bolso.
Quem sabe não me inspirava um pouco ver a noite
me cobrir?!
E nem andei apressado.
Mesmo com o rosto molhado já não me interessava
o fim.
Pensei em Sartre.
O que o levou a escrever “O Muro”?!
Vejo seres tão imundos!
Talvez, o mundo seja mesmo ruim.
Coloquei as mãos no bolso,
olhando para meus pés encharcados,
pensamentos agitados:
O que eu sou, enfim?!
Talvez não seja nada!
Talvez seja uma carta para alguém abrir.
Talvez eu seja os meus versos
incompletos,
meus medos tão incertos de nunca conseguir...
Talvez eu seja a incerteza.
Eu sou a incerteza!
Essa é minha única certeza:
A de que eu não sei nada de mim!
UMA CARTA PARA VOCÊ MACHISTA
“Poesia, era assim que deveríamos sermos descritas
Pois nascemos em meio a dor e em meio a dor damos vidas
Mas quase ninguém liga e eu não vim aqui passar pano para homem escroto
Vim dizer que por nós somos, somos uma só, uma só vida
E quando uma de nós morre... eu me sinto diminuída
E não é que não gostamos dos homens, mas estamos cansadas demais
Tendo que explicar o machismo, o assédio, o estupro...
Cansada de todos os dias termos que gritarmos por paz
Cansada de sermos diminuídas, espancadas e mortas
Cansada de sermos jogadas da sacada
Tratadas como nada, silenciadas, sem vida própria
Então por favor, pega sua opinião, seu machismo e homofobia
É aquele ditado: a porta é a serventia!
Estamos cansadas! E você aí do seu conforto sempre ganhando mais
Não julgado, não estuprado ou oprimido
Abre a boca imunda pra dizer que o que fazemos é vitimismo
Que na verdade não precisamos disso
Que no fundo somos todos iguais!
Mentira. Estamos cansadas...
A cada duas horas no brasil uma mulher é morta
Somos iguais mesmo? Que ideia torta!
Mais ações, mais atitudes. Suas flores no 8 de março
Hoje, não mais nos iludem
E digo com toda certeza que não dá mais!
E você vai dizer que era tarde e que a roupa dela era curta
Sempre arrumando um jeito de pôr na vítima a culpa
É muita humilhação, você não enxerga isso?
Você só sabe dizer que é feio e rude uma mulher lutar pelo feminismo
Vocês estão acostumados com a bela recatada do lar
Mas agora eu sou do ler e entendia que não sou obrigada
E não levante a mão para mim. Acha mesmo que eu vou ficar calada?
Pode me chamar de doida, pode me chamar de vaca
Entendi que você só sabe xingar por não saber debater
E por não ter argumentos válidos para defender sua causa
Sou do lar, sou da rua. Entenda querido sou minha
E não objeto ou pronome possessivo sua
Sou livre, o que sou ou deixo de ser não te diz respeito
É feio amamentar na rua e mostrar os seios
Mas é bonito tu espancar tua mina e lhe faltar com respeito
Ia dizer que é engraçado, mas o papo aqui é certo, de luta
Engraçado seria ver um assediador sendo espancado na rua
Mas tudo bem, você vai dizer que chega de violência
Mas não aciona a polícia quando teu irmão espanca a cunhada
Ou que a tua melhor amiga “caiu no banheiro”
Mas é só a gente organizar um movimento feminista que pronto
“indecente” “grosseiro”
Machista! Mude sua postura. Não queremos ser melhores que ninguém
Só queremos nossa liberdade e segurança nas ruas
Mas ser passiva não! Isso não mais!
E se vocês não derem o que estamos pedindo, nós iremos atrás
Como sempre fizemos. Mulheres de glória, mulheres de luta
E se você não aceita, nós não iremos pedir desculpas.
Por isso meninas, não baixem suas cabeças e não deixem que lhes subjuguem
Se está difícil eu entendo, mas estamos aqui para isso, segure minha mão, resista e lute!
Jamille Anahata
Amazonas - N
Jamille Anahata é manauara, bissexual, poeta e pesquisadora de relações raciais e branquitude. Acredita no poder radical da sensibilidade e dos afetos; conduz experimentações poéticas nas suas redes sociais. Faz parte do coletivo artístico-poético Terracota, do coletivo GT Indígena do Tribunal Popular e possui poemas nas antologias Poesia indígena hoje, Longe de Monte Carlo e Chão vermelho.

Poemas
cachimbo
uma só estrela apareceu e conversou comigo essa noite
me contou seus planos
me perguntou pra onde eu ia
como era queimar desse jeito
no meio da cinza
me perguntou dos planetas que visitei
desenhei no ar meu itinerário
com as pontas
dos meus dedos
de maneira que sabia
que desapareceria
tão logo o sol chegasse
efêmero
planos feitos de pó
sem compromisso com eternidade
(nós duas sabemos que isso não existe, rimos)
ela quis ser mensageira dos meus sonhos
disse que poderia chegar
em qualquer janela interplanetária
primeiro eu quis recusar
dizer não precisa
depois
depois eu cedi à vontade de pedir
deixa então na janela uma semente
caso ela acorde querendo plantar
breu
dentro da canoa só havia um remo. só havia um sonho. a noite salpicada de estrelas, o rio salpicado de espectadores, a escuridão preenchendo os espaços. só havia uma correnteza, e uma canoa deslizando. um morcego de guia. presenças na beira da estrada. assistindo. acenando boa viagem. o rio decidiu vamos. o estômago grunhiu. o vento nos cabelos e o balançar das águas. a canoa sabia. curvas, banzeiro, árvores laranjas. bateu suave no destino.
um pé na água. outro cauteloso. deslizando no barro e esperando a reação dos pés da terra.
venha. já estávamos te esperando.
trança
quando via sua mãe e suas tias cortando buriti com terçado preparando palha
juntando o quebra-cabeça com dedos calejados
luzia não via a hora de ser grande
os dedos das matriarcas
cruzando
em cima
embaixo
em cima
embaixo
em cima
embaixo
em cima
embaixo
luzia imitava nos cabelos
à porta ela espreitava
e num piscar de olhos
dentro estava
luzia dormia
e luzia sonhava
em ser um dia tecida
---
não sou só
meus joelhos ralados
ou a cicatriz na minha barriga
sou também canga estendida em dias ensolarados,
sorriso bordô, dança e cantiga
gotejar
meia-luz de noite ardente
lençóis amarelos emaranhados
minha mão em nuca suada
os cabelos pretos embaraçados tua língua quente no meu queixo dedos no meu colo exposto
e mamilos eriçados
o gemido rouco
as pernas retorcidas
tu sabes meu desejo
e insistente me atiça
e me beija devagar
tu por baixo, eu por cima
tua respiração acelerada
quando unhas deixam caminhos brancos nas coxas suadas
eu te provo ansiosa
impaciente tu me apressa para dentro sou obediente
minha hora favorita
é quando teu pé se enterra no colchão a voz goteja
uivando amena mais e mais e mais e mais nascente abundante
mergulho despreocupada
nadamos peladas
submersas e sincronizadas
te busco risonha
em espirais líricas
até emergirmos poéticas
com nossos corpos rítmicos
Jussara Vasconcelos
Amazonas - N
Sou uma ideia utópica,
nasço e morro no papel.
Até que a teoria é boa,
mas não me coloque em prática que eu não dou pra ação.
Uma nortista de 24 anos, que eventualmente diz ter 22, porque a maturidade não lhe cai bem.

Poemas
ROXO ESCURO (QUASE AZUL)
2 da manhã, poema, estou acordada.
No útero uma dor seca, alargada e com data prévia.
O ventilador eu vou desligar pois ainda é inverno,
e mesmo em maio os torós de outubro se esparramam.
A minha avó com a sua lanterninha de olhar as horas,
a minha avó que agora é raro que eu admire,
sono incabado, longo e seco e detestável
Uma segunda-feira se insinuando num fim de vida.
PEIXES GÊMEOS
Se eu fosse,
se eu fosse agora um mar zangado;
Com ondas girando azuis e quebrando brancas,
com elas te engolindo inteira, e afogando um tico
me engoles e, com surpresa, sou toda sal.
Se eu fosse,
se eu fosse agora um peixe mansinho;
Quem em teu límpido aquário está mergulhada,
me perdendo, engalfiando em teus vazios,
na tua calma, afogando em águas paradas.
MANAUS TEM PORTO COM NOME INGLÊS
A Panair é uma miséria só.
eu sinto medo no porto e feira.
Aquela gente descarregando melancia,
jogando pro alto, jogando pra baixo,
em tempo de acertar um.
É uma aflição, me dá um aflito.
Os barquinhos brancos de frente,
rio negro com céu azul,
A Peta que sempre vai de recreio,
eu queria ir nele pra Lábrea.
Fazer parceria rede/banzeiro.
Eita beleza!
Mas a Panair, “Panéir”, Deus que me dibre.
eu sinto medo na feira e no porto.
homens me olham, e eu lembro também ser carne,
o cheiro de peixe,
as barracas com coisas repetitivas,
tédio. Eu sinto pena do tédio daquela gente.
Do suor,
Das meninas que ficam por lá a noite...
as meninas que assim como eu são carne
12:03 HRS
“Quando um não quer, dois não brigam”
Brigam.
Brigam porque a briga não exige fala;
Não exige falhas,
E se instala pela sala como cortina.
Judeus e egípicios lado a lado
Os dois se escutam,
Temem o combate,
Mas não se veêm.
Até que amanheça,
E de manhã sempre há um que afoga.
Um que sucumbe ao oceano do que não disse.
ESQUADRILHA ABUTRE ÀS 22 HRS
“Ela pediu que eu descrevesse,
Eu disse “tipo um pombo morando no peito”
“Ele bate as asas, são asas frenéticas”,
não era correio, não trazia mensagem.
E de noite fogos que cheiravam a droga,
Perguntei a ela se ela tinha ouvido,
Porque o dito pombo faz tudo irreal.
E ela só me disse “tá chegando coca”,
Ela só me disse, e eu não disse nada.
Eu me encolhia, me enquietava,
Era como um medo, só que sem perigo;
Era como um susto, só que sem motivo;
Era como um pombo, de asas inquetas.
E eu quero que prendam;
Quero que segurem;
Quero que agarrem;
Que o capturem;
Eu quero que peguem o maldito pombo, e que peguem agora!
OS JARAQUÍS TAMBÉM AMAM?
Florbela Espanca (em antologia) empoeirando na minha prateleira; E o rádio da
sala, tocando sentido um Fagner intenso que se quer ser peixe.
Cá comigo invejo essa inocência que é ter coragem de afundar no outro,
quando mesmo em mim, qualquer pingo d’água me embaça a vista num presente
turvo.
Myriam Scotti
Amazonas - N
Myriam Scotti nasceu em Manaus, em 1981. Venceu o Prêmio Literário de Manaus com o original Terra Úmida, em 2020. É cronista do jornal A Crítica e mestranda em literatura e crítica literária pela PUC-SP. Formou-se em direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Das vivências com seu filho, surgiram crônicas e histórias infantis, momento em que resolveu dedicar-se totalmente à escrita e publicar seus primeiros livros.
latitude: -3,1303048 / longitude: -60,0225347

Poemas
De onde nasce a poesia
Lanço-me no abismo das memórias
Por me construírem ao longo dos dias
ainda que muitas vezes fétidas
ainda que outras me causem agonia
A página em branco suplica
Para que eu cavouque mais fundo
Se quero que palavras nela brotem
É preciso não temer o mergulho
Ser poeta exige coragem
De impedir a dor passar
Ao coração, breves descansos
O tempo do fôlego se renovar
A beleza não está na dor do poeta
Mas em como ele a descreve
Burilando a palavra sem descanso
Até que desdiga para que serve
Ao desdizer o sentido
Palavra e poeta se fundem
Pois ambos nascem inconformados
Com tudo o que veem no mundo
Juntos, então, inventam criam distorcem
Ambos aguçando suas ruínas
Transformando as palavras
No acalento chamado de p o e s i a
Lado de dentro
Meu aconchego é do lado
de dentro, vestida do avesso
onde as lágrimas escorrem
dos olhos ao peito
onde o sangue jorra
para dentro da pele
onde o gozo se sufoca
com as palavras que escondi
[de mim mesma]
das minhas estranhezas
faço então estância
sou minha própria arena
Durante as refeições
engulo colheradas de ruína
Mulheres chovem
Como a chuva que cai p’ra limpar
Nuvens carregadas que se espremem,
Tantas mulheres chovem p’ra vazar
O que um coração quebrado sente.
Pois que o choro nunca é fraqueza,
É natureza a cuidar do corpo,
Levando os rejeitos para longe,
Devolvendo o sorriso que se esconde.
Chuva que limpa céu torrencial,
Lágrimas que lavam a alma triste,
Aliviam dor exponencial,
Sem levar em conta dor que persiste.
Desafio se há mulher que chova
Sem transbordar angustia qu’insiste.
Amor incômodo
Eu te amo, amor incômodo!
A vida era fácil
quando não existias
Arrombaste a minha paz
Fizeste-me pranto
Fizeste-me agonia,
levando embora a alegria
da ignorância que não possuo mais
Ainda assim, desejo-te perto,
porque sem ti já não sei passar os dias
Fica claro então que é no caos
que encontro a harmonia
Rios que passam
Rios que aqui passam,
passam águas abundantes
angústias não passam
Priscila Lira
Amazonas - N
Priscila Lira é escritora, desenhista e professora. Publicou O barulho do mormaço (2016) e Manual de feitiçaria (2013), disponíveis em e-book, gratuitamente.
latitude: -3,0349675 / longitude: -59,9826391

Poemas
Condução
ninguém se surpreende mais
da velocidade que as imagens
passam na nossa frente,
tipo o instagram
ou o correr do ônibus pela paisagem da cidade:
muros maquiados de grama
carros tubos caminhantes estudantes
pilhas e pilhas de casas escritórios consultórios laboratórios
plantas solitárias
janelas e janelas
eis que!
surge uma costa
e senta em uma delas
rebola o corpo todo
procurando a melhor posição
uma acrobacia no buraco sem grade
meu coração treme
grita pra dentro
NÃO CAIA DAÍ MOÇA
NÃO PULE DAÍ MOÇA
o braço esquerdo dela é posto para o lado de fora
se apoia na vidraça
vejo que a camisa
azul marinho
tem uma listra branca na manga
a mão acaricia com a flanela
em movimentos
delicados
e circulares
minhas costas transparentes
e o sinal abre.
Mundo
Acordo assustada na rede, tiro o cobertor do rosto e vejo pela grade do portão que o barulho de fora é o vizinho jogando caixas e caixas de entulho, latas de suplemento alimentar no jardim. Quando ele volta rumo à casa, cubro os olhos com o cobertor roxo e peludo.
Lá de dentro, a luz nublada entra violeta, joelhos flexionados e pernas abertas formam um barraquinho tomado pela nuvem de cheiros saindo da minha calcinha. Vez ou outra, emerjo olhos e nariz para espiar, coloco as mãos para fora, balanço as folhas da oliveira.
Mergulho novamente.
Esfrego as mãos no rosto ainda sonolento na tenda violeta e tudo se interrompe pelo perfume do sabonete de castanha. Passo a língua pela ferida nos meus lábios.
Respiro.
Bicha loca
Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu.
Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente,
esta vida é grande.
G. Rosa
Teve um dia
que eu encontrei, naquele bar que elogia o marido da Elza,
o ex-patrão que PUXOU O MEU CABELO
larguei os amigos na calçada
e caminhei
vagarosamente
enquanto seus olhos se agarravam nos meus
em brasa
EU GRITO
EU GRITO
EU GRITO
e o velho se esconde atrás do dono do bar
que ao sinal de comando
abana o rabo e vem atrás de mim
pedir o copo de volta.
Minhas mãos desobedecem
e ouço cacos na sarjeta,
desfilo,
sem olhar pra trás,
nem pra baixo.
O boy do tinder me oferece carona,
que eu recuso,
orgulhosa e bêbada
pra dar às mãos à lua cheia
que decide dar a minha mochila (umdoceumbegumcaderninho)
ao homem da rua
espiando,
camisa branca,
atrás da árvore.
Caio no chão,
mordo sua mão que me amordaça
com toda a força do meu ser
– como sempre sonhei fazer em pele viva –
Grito que sou o capeta e vou matá-lo,
ele soca meu olho, dou chutes desesperados
GRITO
ele corre com o prêmio nas costas
Eu ganho arranhões na bunda,
um olho roxo, a boca inchada.
Rebolo a raba no espelho,
tiro uma foto,
conto pra todo mundo
orgulhosa.
Notas sobre mergulho
Quero viver meu cercado de destroços feito fosse, sei lá, um playground. Unir, colar, empilhar essa tralha toda, depois chutar, forjando um desmoronamento enquanto meu corpo, forte, dá gargalhadas e dança, nu, buscando perfumes na vegetação, os dedos sujos e o cabelo enfeitado, roçando em texturas similares, diferentes, curiosas. E coisa em que mergulhar e levantar as mãos alegres cheias de líquidos. Água e brilho. Comer é importante. Acho, sou, pareço? cruel, muito mais que suicida. No centro de Manaus tem mendigos que brincam de tomar banho nas poças.
Tenho repensado as poças, veja como parece que funcionam: perto do mar e da grama, elas ficam lindas, no escuro, refletindo a luz, dos dias, dos postes, ainda mais se tiver chovendo, como o dia em que cheguei aqui em Florianópolis. Se demoram a evaporar, criam musgos que se desprendem e ficam boiando, parecendo pequenas rugas verdes. O meu desejo era que elas nascessem e evaporassem constantemente, mas e os musgos, né?
Mas e não é tudo isso mesmo que acontece?
Algumas poças nunca veem luz direta, parecem segredos compartilhados entre pedras, areia, barro. Abrigam as mais diversas formas de vida e morte.
Ainda não sei muito bem o que dizer das poças de asfalto. Brilham, né. Mas sigo acreditando que, pelo menos essa, não é amor. Ou, sim, né, uma estapafúrdia forma de amor.
Mas também tem o vento, o mar, o rio, as árvores…
O amor atravessa
Parece que tô dando voltas num igarapé delicioso. Ou serei um musguinho boiando?
Peguei uma mania engraçada de gostar do meu cecê. Não o de todo mundo, só o meu mesmo. Depois que comecei a tentar decifrar aquele cheiro misturado com óleos de frutas, madeiras, achei que parecia, assim, uma flor exótica. Às vezes, no ônibus, quando volto sentada, enfio a cara dentro da minha camisa e sorrio. Experimentos com o sovaco: outra lição da velhinha pornógrafa. Até quando olho meu sovaco agora lembro de Hilda Hilst, vê se pode? Mas bom também é aquele de quando eu passo o dia paradinha, pensando, esquecida dos perfumes.
Aqui do mirante do memorial, os sons do largo parecem se tornar uma coisa só, envolvida por uma bolha que os distancia de nós, os suspensos. As pessoas lá de baixo, pequenininhas, sem rosto, por causa da minha miopia, ao mesmo tempo em que não me dão a mínima, me causam cerrrto arrr de superioridade. Tem vezes que fico assim no chão, mas as coisas se invertem: olho as pessoas e sinto que não consigo alcançá-las, fico um nojo. Tem vezes que acho isso um talento. Porém meio irritante.
Aconteceu de eu ter pensamentos acabados sobre a natureza e ela fazer justo o contrário logo depois, exemplo: pensei “como os pássaros do centro são silenciosos e um bando passou GRRRRRR GRRRRRRR GRRRRRIS depois outro ou:
Três bolhas de sabão alcançam a minha altura e puffff...
Xexéu
Folheia livros de arte pendurada na rede.
Por suas pernas curtas,
a altura não precisa alcançar muita distância do chão
para os pés sacudirem o ar
em feições aquáticas de domingo.
Molhada de suor
não queria outra piscina hoje,
ou talvez..
O pés sacudindo felizes
é cena de grande importância,
e se repete
na história
ainda que só
no olhar de suas travessuras
aos ofendidos: po(r)(s)sua pele de ostra.
Goza pensando num mundo,
onde a vontade de rasgo não é imperdoável.
Para isso eu preciso:
garras, dentes, ostridade.
Susy Freitas
Amazonas - N
Susy Freitas nasceu em Manaus, Amazonas. Escreveu os livros de poesia Carrego meus furos comigo (Urutau), Alerta, Selvagem (Patuá), vencedor do Prêmio Literário Cidade de Manaus; e Véu sem voz (Bartlebee). Publicou em diversas revistas literárias, como 7Letras, Subversa, Ruído Manifesto, Mallarmargens e outras. É uma das editoras da Revista Torquato.
latitude: -3,13388 / longitude: -60,0283398

Poemas
SELVA
Quando penso na selva
penso nos filhos mortos
no ventre do seringal.
Mortes contadas
que a vó paria ao falar.
Mortes vivas
na palavra e no sangue
que rasgou o mapa.
Quando penso na selva
penso nas lágrimas de
Werner Herzog
e o verde monstro
beijando em seus
lábios deliciosos
o grande Pesadelo.
Quando penso na selva
me explico o calor
do asfalto
a pele curtida
e o coração implacável.
Penso na selva
que não cabe
num outdoor
e ergo o punhal
em sua glória.
CADEIRA ELÉTRICA
O sol
senta o horizonte
na cadeira elétrica
e sentencia
a derme
à morte.
Por sorte
a megalomania
do calor
esquizofrênico
amazônico
despeja
pink lemonades
da tempestade
mais absurda.
Dionísio
Dança o shoegaze
no teu copo
de nescau
e cinge
corações
ao meio
na noite
periclitante
que ainda
engatinha
na sala de estar.
SELF SERVICE
Talheres rugem no self service
enquanto encaro teu
tédio oleoso
e a vontade de correr é
indiscutível —
deixar esse país pra trás.
Encampa o rito
a fome que não cabe
no prato feito —
a cruz de garfo e faca
arruína na louça
a carne que rasga o
meio-dia e meia.
Na falta de algo melhor
(economia aquecida
vagas de emprego
petit gâteau
ou um Lulu
da Pomerânia)
a paralisia da sesta
é meio um prêmio.
Brasil — ame-o ou deixe-o.
AMAZÔNIDA (I)
Não me pergunte
sobre o rio – eu
fui cozida
no pavimento – eu
nunca soube
nada do rio – além
dos meus sedimentos – do
abraço morno
do domingo
flutuante
e o cenário todo
sorve esse sentir.
Lá abraço o rio
que aperta tudo
num nado
devorado –
longe da margem
pra longe da tarde
não me confunda com esse lugar
nasci aqui – mas meu rosto mente
não toco o chão com propriedade
na negação – beijo – o rio sente
e o cenário todo
sorve esse sentir.
CONDOMÍNIO
Estranho essas manhãs
de janelas de televisão desligada.
As abelhas operárias
resfolegam sobre o pão e o leite
veladas por cortinas blackout
e um exército de yorkshires –
esculturas da classe média
no aguardo da próxima exposição.
No recorte das áreas comuns
etiquetas saltam das roupas
carros vertem desodorizante
e filhos obesos atestam soberania.
Isso – a hospitalidade como rito
no invólucro do elevador
a imutabilidade do gramado
caucionada pelos subalternos
a vida cem por cento regimentada
e o cárcere das crianças no play –
sobe numa náusea sem precedentes
na garganta do meu instinto voyeur.