Janete Santos
Amapá - N
Janete Santos, natural de Macapá-AP, doutora em Linguística Aplicada (Unicamp), reside no Tocantins desde 2003 e é professora associada da Universidade Federal do Tocantins. Publicou Boa esperança (CBJE, 2002); Tecendo imagens (Scortecci, 2003); Rota Macapá/Belém (Scortecci, 2004); Retratos paralelos (Scortecci, 2005), em parceria com Beliza Cristina e Gislaine Chaves; Inquietações (Kelps, 2007), em parceria com Luíza Helena e Eliane Testa; Mosaico (Livropronto, 2011); (Des)Aprisionamentos (Livropronto, 2011).
latitude: 0,0280623 / longitude: -51,0700891

Poemas
Eu me rio
se há megera retração de gotejar-me absinto
nas córneas dilaceradas
se há a dor alheia que me mói e me corrói o dorso
já calejado
há a antevisão que me deságua entusiasmo
de tímpanos inflados
e eu me rio caudaloso no oceano etéreo que me atrai
e abraça
Senha
alcançarás meu coração,
que já sofreu estragos,
se apresentares de antemão
mananciais que afago
Dobras de papel
acaso peço eu que me bajules
com desenhos mil de origami?
teria eu alguma formosura
pra tentar-te sempre que me chames?
se me enganas com teus selos fáceis
que me animam descerrar as portas
sabendo haver nada do outro lado...
nem ligo, se és tu a corda que enforca
a quem seduzes no encantamento
a teu encontro vá, siga correndo
que eu lucidamente, ora, aqui fico
por que iria eu referenciar-te?
não vais, destino, poupar-me do abate...
mas eu, como penso, a ti resisto!
Corpórea
Se medida é ligada ao mercado
como ausência de razão, ao louco
a ti tudo me parece apropriado
desde que em vida já esteja morto
Não te privas de esganar a rosa
se puderes me enfiar os espinhos
no teatro do real que forjas
em banquete inane sem vinho
Nem um naco duma compaixão
te abstrai desse circo hediondo
sustentado por ti vorazmente
Se avivada és sempre, depressão,
que um sentimento doente é reposto
neste coração já em pranto eloquente
Lara Utzig
Amapá - N
Lara Utzig nasceu em Macapá (AP), em 1992. Licenciada em Letras/Inglês pela Universidade Federal do Amapá, é doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) em convênio interinstitucional com a UNIFAP. É professora de Língua Inglesa no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amapá (IFAP), membro-fundadora do grupo de artes integradas Pena & Pergaminho e vocalista da banda Desiderare. Autora do livro Efêmera (Lura, 2020). Escreve no blog Mensagem efêmera.
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Poemas
DELONGA
taciturno
o controle de Saturno
se põe sobre a gente
e eu que sempre fui paciente
percebo a pressa
emergência submersa
que se tatua
na pele
nos olhares
nas mensagens
na urgência de ser tua
nos desencontros do destino
[esse nosso adversário]
esbarrei em ti tantas vezes
e acenei para seguir caminho
em outro itinerário
mas permanecia sempre olhando pra trás
e para o que eu havia deixado
[um amor que nunca se liquefaz]
eis minha sina
mística fase:
os dias que nos separam agora
são esses intervalos do quase
que tecem junto com a aurora
o senão
que é a certeza
do teu sim
não mais tardo:
em breve
chegarás como uma prece
pois eu, que sou filha do Tempo,
te aguardo
como quem espera um milagre
CENÁRIO
quero a Companhia das Letras
quero letras sem companhia
quero ausência de hierarquia
quero legitimação
quero blog
quero livro
quero virtual
quero físico
quero o marginal
deixando de ser periférico
quero zine
se tornando cânone
quero fanfic
na FLIP
quero sarau
quero bienal
quero autonomia
quero edital
quero independência
quero prêmio
quero o underground
ocupando o mainstream
quero slam
mobilizando multidões
quero um infinito leque
de batalhas de rap
quero escritora
ditando regras à editora
quero troca
quero mercado
quero saída
para essa aporia
utopia
sem degrau
múltiplos passos
em patamar igual
nos diversos espaços
do horizonte plural
que é a literatura
CONDIÇÃO ATMOSFÉRICA
Amapá:
leves pancadas de chuva
sexta-feira, 36°C
não esqueça o guarda-chuva
o mormaço se levanta
nuvem espessa, muita lama
nos jornais a apresentadora avisa:
dia quente, meio-dia
fim de tarde:
vento forte, umidade...
o homem meteorológico
não consegue prever o Tempo.
CORRENTEZA
viver é líquido
não como Bauman teoriza
não me refiro à sociedade de consumo
à modernidade
e todo esse compêndio de pesquisa
falo do fluido primeiro
casulo amniótico
e das tetas
colosso-colostro
crime nutricional
de experimentar Coca-Cola
cito as brincadeiras
pega-pega na chuva
penso na sentença feminina
menarca à menopausa
na descoberta do corpo
suor
saliva
lubrificação
sêmen
enfatizo o amor não correspondido
sal dos olhos que acompanha
o amor correspondido
que sempre acaba também
[mas a lágrima é inundação infinita]
e então há a constatação do desdém
o Rivotril
a Budweiser
a heroína
intercalada com champanhes
e brindes de fim de ano
agarra-se a purificação através da fé
água benta
e finais de semana
de fugas para igarapés
e encaminha-se ao pus
ao mijo senil
fraldas da demência
soro fisiológico
morfina
e Tramal
daí tudo termina
em café
seja da manhã
seja dos velórios da família
COSMOGONIA ESCATOLÓGICA
a maior desgraça
nunca é suficiente
ao juízo alheio:
o melhor remédio pra doido
é doido e meio
[se você já quebrou a perna
eu já quebrei o corpo inteiro!]
o homem primitivo
- dividido em castas -
criava mitos
concretos
para explicar os simples
complexos
da vida abstrata
inventou Zeus
deus do trovão
Eros
deus do amor
Hades
deus do submundo
Narciso e Eco a sós...
presenteou com superpoderes profundos
seres sobrenaturais
letais
mas falhos assim como nós
o homem contemporâneo
(já capaz de compreender o metafísico)
transformou-se em tacanho
e inverídico.
imaginou novos mitos
no plano das ideias
fanopeias
da loucura moderna
o mito da meritocracia
o mito da direita e da esquerda
o mito da soberania
o mito da independência
o mito da democracia
o mito da presidência
a grama do vizinho?
sempre muito mais verde
apesar da Amazônia
ao lado
buscamos culpados
além de nós mesmos
{em rede
as lendas locais se espalham}
seguimos pautando conquistas
em contrapeso ao fracasso
dando superpoderes
aos ídolos errados
semideuses
algumas figuras públicas
tornam-se Hércules, Ulisses, heróis
e nós?
meros gados.
Lorrana Maciel
Amapá - N
Lorrana Maciel é atriz, diretora, performer, intérprete de libras, produtora, cenógrafa, dramaturga e arte-educadora. Licenciada em Teatro pela Universidade Federal do Amapá (2019), é membro-fundadora da Cia de Artes Tucuju e da Cia Támana Produções. Coordena rodas de conversa sobre teatro e acessibilidade, colabora com o grupo de artes integradas Pena & Pergaminho e integra o Movimento Cultural Desclassificáveis. Premiada em concursos, participou de diversas antologias, dentre elas: 20 Marias e um grito (2019) e Simpósio de poetas bêbadxs (2021).

Poemas
VETE DE MI
São palavras estilhaçando
e
levando tudo por dentro
Os ósculos dos teus olhares
sombrios me queimam
Deixe-me,
Sem este abismo doloroso
do seu abraço
Nunca tendré
Un minuto de tu verdad en mi
Vete de mi,
vete de mi vida,
vete de mi todo
VONTADE
Tenho rosas e águas,
Podem guiar meus pés
Para o jardim do infinito
Um poema querer partir,
E dúvida do leite existe?
Passado sopra meu peito
Rente e deserto, alguém?
LINHAS
Leva meus olhos, meu ar
Minha alma hei de queimar
Nem o pranto poderá curar
MORFINA
Já não me basta somente a vontade intemporal pela vida,
No agora intentando a inspiração por continuar respirando
Mas cá compreenda, não me faça culpada dessa tragédia,
Também não aponto culpados da minha constante neblina
Apenas sinto-me ora cheia, ora vazia e me transbordando
Nesta manhã melancólica sigo o silêncio em dor crescente
Cresce, aperta, afoga, amedronta e só serena ao anoitecer
Esculpindo fissuras profundas no papel desta sofrida alma
Aqui somente a morfina dos meus versos me trazem alívio
O MEU EU
Prisões, medos e sabotagens
É somente o que me restou
Daqueles enganos tão reais
Alinhar os cacos não é fácil
Arde desesperando devagar
E afia setas para a escuridão
Mendigando o sossego perdido
Ludibriando com esse olhar alegre
Ensaiados no espelho do banheiro
MASSAS DE HADES
Massa, corpo
Massas corpóreas
Flutuam no espaço
Lento, acelera, lento
Fita dentro fora dos olhos
São cores rangentes tangentes
Pré-corrida no centro e margens
Acelera, lento, acelera, lento
Todas as direções, inspira solta
Um verbo parar, enraíza e pulsa
Corre, desvia, desafia e paralisa
Lento, acelera, lento, acelera
Expandindo no aleatório, queima
Afetando as células dos seres
É uma mão enamorada por pés
Acelera, lento, acelera, lento
São guias guiados nos pulsos
Invocando o mundo de Hades